SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sob críticas de grupos LGBTQIA+ e de direitos humanos, entidades esportivas, federações internacionais e governos vêm promovendo um endurecimento das regras sobre a participação de mulheres transgênero em competições e eventos esportivos.
World Aquatics (Natação), World Athletics (Atletismo) e UCI (Ciclismo) foram algumas das federações que adotaram regras mais rígidas nos últimos anos, voltadas à elite do esporte. Foram seguidas meses depois pelos governos dos Estados Unidos e da Inglaterra, que vetaram a participação de mulheres trans de maneira mais ampla nos esportes, com o COI (Comitê Olímpico Internacional) também já sinalizando uma linha mais dura da nova gestão.
A alegação é a de que as ações visam preservar a justiça na categoria feminina e estariam embasadas em supostas vantagens competitivas em relação às atletas cis, devido a exposição à testosterona quando ainda se identificavam com o gênero masculino.
Contribuíram para o movimento alguns resultados emblemáticos, como as vitórias da nadadora Lia Thomas em prova da NCAA (National Collegiate Athletic Association), em 2022, e da ciclista Austin Killips em competição da UCI (Federação Internacional de Ciclismo), em 2023.
Segundo especialistas, não há até hoje, contudo, consenso acadêmico sobre eventual vantagem trans.
“Vivemos situação frágil do ponto de vista técnico para afirmar, com certeza, que a atleta trans tem um desempenho igual ou melhor que a atleta cis”, afirmou Rogério Friedman, médico endocrinologista professor titular da Faculdade de Medicina da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e consultor da ABCD (Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem).
“Há dados conflitantes na literatura médica, os estudos são poucos e escassos, com problemas metodológicos.”
Na FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), pesquisadores do Centro de Medicina do Estilo de Vida acabam de concluir uma metanálise que compilou 51 estudos já publicados sobre o tema, englobando 6.400 participantes.
Os apontamentos preliminares do trabalho “Aptidão física e composição corporal em indivíduos transgêneros e cisgêneros: uma revisão sistemática e metanálise” que ainda precisa passar por revisão por pares para publicação indicam ligeiro aumento de massa magra em favor de mulheres trans.
Não foram verificadas, no entanto, alterações relevantes de massa gorda, força dos membros inferiores e superiores e capacidade aeróbica.
Nos gráficos, cada quadrado azul escuro representa um dos estudos, enquanto o losango azul claro é a média. Se mais à direita, o trabalho indica vantagem à mulher trans; mais à esquerda, à cis.
Conforme Bruno Gualano, professor da FMUSP, fundador do Centro de Medicina do Estilo de Vida e colunista da Folha, a massa magra toda a composição corporal de um indivíduo, excetuada a gordura não fornece elementos suficientes para concluir que há vantagens às atletas trans.
“A aptidão física, que é o principal quando se pensa no esporte, não têm alterações entre cis e trans, apesar da diferença de massa magra”, afirmou Gualano. “Fatores como eficiência neuromuscular, histórico de treinamento e distribuição de gordura corporal podem ter efeitos compensatórios.”
Ele defendeu ainda que o desempenho esportivo não se explica apenas pela fisiologia, com a influência de aspectos sociais e psicológicos como estigmatização, discriminação, acesso a oportunidades e autoestima. Fatores que, em conjunto, podem ser determinantes para o envolvimento e os resultados atléticos.
E, embora não esteja claro em que medida a memória muscular os efeitos fisiológicos prolongados da exposição prévia à testosterona pode superar a influência dos fatores psicossociais, a pressuposição de vantagens das mulheres trans “não parece solidamente respaldada pelos dados”.
“Como pesquisador e cidadão, vejo o esporte como uma porta de inclusão social importante para essas pessoas. E essa porta jamais deveria ser fechada”, disse Gualano.
Restrita até alguns anos atrás aos esportes de elite, a discussão extrapolou mais recentemente para o nível escolar, com decreto do governo Trump proibindo a participação de meninas e mulheres trans em eventos esportivos nos Estados Unidos.
“Minha administração não ficará de braços cruzados vendo homens vencerem e agredirem atletas femininas”, afirmou Trump.
Ao menos 26 estados adotaram políticas que impedem estudantes trans de competir conforme sua identidade de gênero. Aqueles que se negaram, como Maine, têm lidado com processos e cortes de verbas.
Trump afirmou também que não permitirá atletas trans nos Jogos de Los Angeles, em 2028.
A primeira atleta trans a competir nos Jogos foi a neozelandesa Laurel Hubbard, no levantamento de peso, em Tóquio-2020.
Em Paris-2024, uma polêmica relacionada ao gênero das atletas roubou os holofotes nos ringues de boxe.
A argelina Imane Khelif e a taiwanesa Liu Yu-ting tiveram suas participações contestadas na França após serem excluídas no ano anterior do Mundial da modalidade, sob a alegação da IBA (Associação Internacional de Boxe) de não terem cumprido com os critérios de elegibilidade.
O COI criticou a falta de transparência na divulgação dos exames e autorizou a participação das boxeadoras com base na declaração das certidões de nascimento. As duas terminaram a competição com o ouro olímpico.
Primeira mulher a presidir o COI, Kirsty Coventry já sinalizou que poderá adotar postura mais dura em comparação com seu antecessor.
Durante a gestão de Thomas Bach, a instituição deixou de cobrar a cirurgia de redesignação sexual, em 2015, e delegou a cada federação que adotasse as próprias regras, em 2021.
Federações como World Athletics, World Aquatics e UCI, que até então estabeleciam patamares máximos de testosterona, passaram a permitir a participação apenas se as atletas tiverem realizado a transição de gênero antes da puberdade masculina, o que costuma ocorrer por volta dos 12 anos.
A WPATH (Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero) recomenda que a transição não ocorra antes dos 14 anos.
“Pelas conversas que tive até agora, muitas federações internacionais querem que o COI assuma um papel de mais liderança. Temos mais fatos, há mais pesquisas científicas e médicas sendo realizadas”, afirmou Coventry, que disse querer “proteger a categoria feminina”.
Professora da FMUSP dedicada a pesquisas relacionadas à fisiologia, Eimear Dolan afirmou ser totalmente a favor da inclusão social de mulheres trans no meio esportivo.
Mas, quando se trata de alto rendimento, entende ser necessário levar em conta qualquer vantagem que possa existir, por menor que ela seja.
A testosterona afeta vários sistemas no corpo humano, incluindo o musculoesquelético e o cardiorrespiratório, em processo que ocorre ao longo da vida, mas de forma acelerada durante a puberdade, e cujos efeitos não podem ser totalmente revertidos, assinalou Eimear.
“Precisamos de estratégias para que a pessoa trans tenha espaço para ser ativa, participar e competir. Mas acredito que esse espaço não é na categoria feminina, porque não sei como incluir a mulher trans sem desfavorecer a mulher cis.”
Ela citou decisão de julho de 2023 da UCI como possível saída. Dois meses após a vitória de Austin Killips, a entidade proibiu a participação na categoria feminina de atletas trans que fizeram a transição de gênero após a puberdade. Ao mesmo tempo, redefiniu a categoria masculina, permitindo nela qualquer atleta não elegível à categoria feminina.