SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Marcelo Leite se sentou na poltrona bege e reclinável, numa salinha do hospital da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Naquela manhã, era uma cobaia humana. Sob supervisão clínica, inalaria DMT, substância extraída da jurema-preta.
O colunista da Folha de S.Paulo rememora esse dia em “A Ciência Encantada de Jurema”. O livro investiga a raiz que, se hoje inspira pesquisas sobre o uso de psicodélicos em tratamentos médicos, foi por séculos alvo de intensa perseguição religiosa. O ponto de partida foi uma série de reportagens que Leite publicou no jornal em 2022, batizada “A Ressurreição da Jurema”.
Essa planta, farta na caatinga, é central no catimbó, religião de matriz afroindígena mais forte no sertão nordestino. A jurema tem efeito psicodélico, como o ayahuasca do Santo Daime.
José de Alencar menciona o “vinho da jurema” em seu clássico “Iracema”. Com esse “licor de Tupã”, os personagens “sentem a felicidade tão viva e contínua, que no espaço da noite cuidam viver muitas luas”, narra o escritor.
Mais de um século antes, em 1739, o governador da capitania de Pernambuco enviou uma carta ao rei de Portugal com visão menos benevolente: indígenas estavam “tomando certas bebidas, as quais chamam jurema, ficando com elas loucos e com visões e representações diabólicas pelas quais ficam persuadidos não ser verdadeiro caminho o que lhe ensinam os missionários”.
Mário de Andrade também falaria sobre a crença que a rodeia. O modernista fechou seu corpo com catimbozeiros em 1928, numa das andanças pelo Brasil que depois compilaria em “O Turista Aprendiz”.
Sobre a experiência, relata: “É impossível descrever tudo que se passou nessa cerimônia disparatada, mescla de sinceridade e charlatanice, ridícula, religiosa, cômica, dramática, enervante, repugnante, comoventíssima, tudo misturado. E poética”.
Andrade também cita Mestre Carlos, entidade espiritual que, incorporada numa pessoa, o guiou na cerimônia, conforme essa crença. “Safadinho e brincador”, é retratado como alguém que “protege pra todas as horas de todos os dias o brasileiro que vos escreve agora”.
Marcelo Leite, ateu, encontrou prosa própria ao participar do teste clínico para investigar o efeito antidepressivo da DMT inalada. Na primeira de duas doses, a sensação foi de “leveza enorme, como se flutuasse no espaço”, numa partida “vertiginosa”, em que “tudo fica colorido de imediato”, conta no livro.
A segunda inalação é uma porrada. “Alguém já descreveu a experiência como decolar num foguete, mas agarrado ao lado de fora do bólido.”
Segundo a Organização Mundial da Saúde, o mundo tem 5% de sua população adulta com algum grau de depressão. Os antidepressivos no mercado não surtem efeito em uma em cada três delas. É preciso correr atrás de novos tratamentos, portanto, afirma o autor.
Estudos têm mostrado, ele diz à reportagem, “efeito rápido e sustentado” no uso de DMT e outros psicodélicos contra esse mal. “No primeiro dia já tem uma queda forte de sintomas de depressão.” A melhora permanece após sete dias e mesmo meses depois. “Se você comparar com os antidepressivos disponíveis, é um resultado incrível. Agora, vai servir para todo mundo? Não necessariamente.”
Se você nunca ouviu falar de jurema ou catimbó antes, saiba que não está sozinho. Leite vê “peculiaridades históricas” que justificam por que a ayahuasca, por exemplo, é bem mais pop.
Era, afinal, um mistério para ele “a razão de essa outra religião baseada em sacramento psicodélico, tão brasileira e tão mais acessível que rituais praticados nos confins da Amazônia, não encontrar a mesma penetração na cena alternativa dos centros urbanos do Sudeste”.
Aqui vale considerar que a religião da jurema muitas vezes era praticada em segredo, para driblar a represália social e policial. Ser catimbozeiro virou um rótulo “extremamente pejorativo, coisa de feiticeiro do mal”, afirma Leite. Mais ou menos como ser chamado de macumbeiro.
A crença acabou mais confinada ao Nordeste, enquanto primas como o Santo Daime e a União do Vegetal foram importadas para as bandas sudestinas, até para o exterior.
Outra explicação complementar: a ayahuasca remete a uma romantização dos indígenas “como puros, pelados, com adereços de penas, arco e flecha, esse estereótipo”, diz Leite. “Tem essa mística de ser uma bebida originária da sabedoria indígena. Com a jurema não dá para pensar nisso. Você vai encontrar gente negra, branca, morando em aldeia no Nordeste e se reivindicando indígena, porque é fruto tanto da miscigenação quanto de toda a colonização que foi terrível lá, muita escravização. É uma coisa muito mais mestiça.”
O autor participou de alguns rituais do catimbó nos últimos anos, mas conta que suas convicções seculares permaneceram de pé. Esse contato, contudo, o fez enxergar com outros olhos tudo aquilo que testemunhou.
“Com essa formação em jornalismo científico, a minha tendência 15, 20 anos atrás seria fazer uma descrição [da prática religiosa] beirando o pejorativo e o crítico, [vê-la] como simulações, teatro. Um pouco por conta das experiências psicodélicas, desenvolvi um respeito maior por essas manifestações diferentes das minhas.”
Na obra, Leite envereda também pela aproximação da ciência com a jurema, sobretudo por meio do Instituto do Cérebro da UFRN, que promoveu um pioneiro estudo clínico com DMT inalado por humanos. Aquele do qual o jornalista foi voluntário.
A equipe se esforça para integrar substâncias psicoativas no SUS (Sistema Único de Saúde). Não que não haja resistência conservadora aos avanços acadêmicos nesse campo. Claro que há. Mas não deixa de ser curioso “gente achando que pode ser que as coisas andem mais rápido nos Estados Unidos porque, no governo Donald Trump, algumas figuras-chave são favoráveis a psicodélicos”.
O aliado Elon Musk, usuário de cetamina, é um exemplo. Robert Kennedy Jr., secretário de Saúde, outro. Ele já disse que alguns psicodélicos podem ter seu valor em terapias, opinião encorpada após seu filho usar ayahuasca durante o luto pela morte da mãe.
Há ainda um lobby poderoso dos veteranos de guerra. Estudos sinalizam benefícios no uso de MDMA (o ecstasy, na linguagem popular) para tratar o transtorno de estresse pós-traumático, que atinge muitos soldados americanos. A FDA, agência que regula fármacos no país, por ora rejeitou a liberação dessas psicoterapias.
“Tem uma pressão também por esse lado, e obviamente os veteranos de guerra são os heróis da direita. Então tem um campo conservador que é muito favorável à pesquisa com psicodélicos.”
A CIÊNCIA ENCANTADA DE JUREMA
– Preço R$ 99,90 (336 págs.)
– Autoria Marcelo Leite
– Editora Fósforo
– Lançamento Quinta (8), às 19h, na unidade Vila Nova da Livraria Martins Fontes, em São Paulo