SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A eleição de um novo pontífice, ao menos em teoria, é blindada de interferências externas -nela são os cardeais e Deus no controle, dirá a Igreja Católica.
Não há TV, jornal, sinal de wi-fi durante o conclave. Nada. Se algum dos 133 votantes do Colégio Cardinalício precisar de algo -uma emergência médica, digamos-, há walkie-talkies para contactar o mundo além da Capela Sistina. Ali o sucessor do papa Francisco será escolhido sob “A Criação de Adão”, o afresco com Deus e Adão tocando dedos que Michelangelo pintou no teto.
Na prática, é inevitável que haja algum clima de campanha eleitoral, de forma mais aberta ou mais velada. Não só porque os cardeais conversam entre si e podem já ter uma inclinação -preferir, por exemplo, um nome que siga no ritmo reformista de Francisco ou que tenha o apego doutrinário de Bento 16.
A ideia de que os cardeais estejam à prova de ingerências não para de pé. Mesmo antes da morte de um papa, já há especulações sobre quem poderia ocupar o posto na sequência. Quando o pontífice de fato morre, até atores seculares podem embaralhar a sucessão papal.
No conclave deste ano, por exemplo, o presidente da França foi mencionado como alguém que tenta intervir no resultado do conclave. O rumor, até aqui sem lastro factual, circulou em parte da imprensa conservadora italiana, que acusa Emmanuel Macron de se reunir com cardeais conterrâneos para dar pitaco na decisão deles.
A conta oficial da Casa Branca no Instagram, por sua vez, compartilhou uma imagem forjada pela inteligência artificial em que Donald Trump aparece ele próprio como papa.
O presidente, que já chegou a declarar que “gostaria de ser papa”, disse que não teve “nada a ver” com a montagem. Ele não é católico e teve entreveros com Francisco, mais recentemente por conta de sua política migratória, desaprovada pelo papa morto em abril.
“O Poderoso Chefão 3” ficcionaliza na figura do cardeal Lamberto a hipótese de que até a máfia teria interesse em infiltrar os seus na Santa Sé. Mas a guerra de influência é travada sobretudo dentro da Igreja Católica.
“Em todos os períodos da história sempre houve aqueles favoráveis às mudanças e os mais conservadores”, diz a antropóloga e historiadora Lidice Meyer, dedicada ao estudo bíblico. “Não é diferente no momento atual. Entre os cardeais há os que são partidários das inovações trazidas por Francisco e que gostariam de um sucessor que não só as mantivesse como ainda as ampliasse. Há também uma ala mais conservadora que preferia conter as inovações em prol de maior estabilidade da Igreja. E há também o grupo que defende as mudanças, porém com mais cautela, sendo considerado moderado.”
A tentação de emplacar um aliado no trono ocupado primeiramente pelo apóstolo Pedro, diz o antropólogo Rodrigo Toniol, da UFRJ, “existe desde que o mundo é mundo”. O papado, afinal, sempre foi uma peça importante no tabuleiro da geopolítica. “É só pensar que o papa era a figura que mediava coisas do tipo Tratado de Tordesilhas [acordo entre Espanha e Portugal no século 15 para repartir zonas de influência].”
Algumas coroas católicas como França, Espanha e Áustria, inclusive, por séculos mantiveram o “jus exclusivae”, direito formal de vetar certos nomes no conclave. O último a ser bloqueado pelo dispositivo foi o cardeal italiano Mariano Rampolla, em 1903. “Foi tão escandaloso que o papa seguinte, Pio 10, proibiu de vez”, diz Toniol.
Hoje a regra é isolamento durante o processo eleitoral para não se deixar levar por agentes externos, “mas o que foi construído antes pesa”, afirma o antropólogo. “Impressões, alianças, alinhamentos.”
Oficialmente, qualquer campanha é proibida, até porque não há candidatos oficiais, ninguém monta chapa para pleitear o papado. Pode haver, contudo, um fortalecimento paralelo da imagem de certos papáveis. Há quem publique livro em várias línguas, dê entrevistas estratégicas e invista numa reputação com apelo papal.
Só não pode dar muito na cara, sob o risco de pegar mal. No conclave de 2013, o arcebispo de Milão, Angelo Scola, despontou como forte candidato a papa. “Italiano, teólogo refinado, muito articulado com intelectuais e mídia católica internacional”, diz Toniol. “Era o mais cotado. Tinha uma rede de apoio pesada, inclusive no Vaticano. No fim, isso até atrapalhou, parecia campanha demais e gerou resistência.”
Acabou ganhando um azarão da Argentina, que nem sequer aparecia na lista de possíveis sucessores de João Paulo 2º. O vitorioso Jorge Mario Bergoglio escolheu Francisco como seu nome de papa.