BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Faz parte do plano de governo: qualquer estabelecimento comercial terá que aceitar ao menos um tipo de pagamento digital. A promessa é mais do que um alívio para turistas desprevenidos na Alemanha. A maior economia da Europa precisa se livrar de um passado de eficiência que não dá mais conta dos desafios futuros.

Essa é a essência do discurso de Friedrich Merz, 69, conservador, católico e milionário que deve ser formalmente eleito primeiro-ministro nesta terça-feira (5), em Berlim. O vencedor das eleições de fevereiro precisa apenas ser confirmado por 316 dos 630 parlamentares do Bundestag. A coalizão de sua aliança, CDU/CSU, com o SPD do antecessor Olaf Scholz, alcança 328 representantes e afasta qualquer possibilidade de surpresa.

Se serve para confirmar o premiê, a matemática parlamentar apertada restringe voos maiores. A Grande Coalizão, termo usado no país para a junção dos principais partidos de centro, à direita e à esquerda, também soa como uma lembrança de tempos mais promissores. Os democratas-cristãos e sociais-democratas, que ganharam o apelido nos anos 1960, quando tinham cerca de 90% do Parlamento, mal superam os 50% agora.

Merz é filho dessa Alemanha Ocidental que ressurgia como potência do pós-guerra, um ex-executivo de banco de investimentos que pilota o próprio avião para visitar a família no fim de semana. De trem, demoraria muito mais, pois o sistema ferroviário alemão, antes exemplo, sofre atualmente com panes e atrasos.

O discurso de apelo modernizante, que fabricou um ministro da Digitalização (Karsten Wildberger, CEO da maior rede varejista de eletrônicos da Europa, dona das marcas Media Markt e Saturn), tem apelo, principalmente nos setores financeiro e empresarial. Ocorre que um partido criado por economistas insatisfeitos com a condução da Alemanha durante a crise de débito europeia, em 2013, acena com soluções mais fáceis.

A AfD, que tem integrantes investigados por discurso de ódio e neonazismo, conquistou a segunda maior bancada do Bundestag e já lidera as pesquisas de intenção de voto. Sua plataforma promete, grosso modo, outra volta ao passado, ao marco alemão e uma Alemanha independente da União Europeia. Um país movido a carvão, energia nuclear e carros a diesel, tudo o que os Verdes tornaram palavrão.

E intolerante com imigrantes, que serão mandados de volta em deportações em massa. “Reimigração? É assim que chamam? Faremos então”, prometeu a líder do partido, Alice Weidel, em comício, pouco antes da eleição. Nada disso resolve os três anos de estagnação econômica da Alemanha, mas geram votos.

Em plena campanha eleitoral, após um novo episódio de violência protagonizado por imigrante, Merz surpreendeu ao propor e conseguir aprovar uma moção anti-imigração no Parlamento com votos da AfD. Foi acusado pela sigla extremista de estar se apropriando da agenda alheia, mas se guiava pelas pesquisas de opinião, que lhe davam 69% de apoio na manobra.

Mais de uma vez o conservador declarou que a imigração deveria ter uma solução mais efetiva do centro político e que tergiversar apenas transferiria mais votos para a AfD.

O movimento não prejudicou sua eleição, mas deu protagonismo ao partido A Esquerda, que liderou uma série de manifestações contra Merz e a AfD. O resultado prático foi que, no novo Parlamento, AfD e Esquerda tem uma minoria de bloqueio no Bundestag, ou seja, conseguem juntas impedir uma mudança constitucional.

Foi aí que Merz surpreendeu mais uma vez, propondo ao SPD e os Verdes, da coalizão derrotada de Scholz, uma mudança na Constituição para relaxar o freio da dívida, a versão local do teto de gastos, ainda no Parlamento antigo, onde conseguiria a maioria de dois terços. Desta vez, o conservador nadava contra a própria corrente, propondo o fim de décadas de austeridade fiscal, marca da Alemanha potência, mas também de sua estagnação atual.

O resultado foi comemorado pelo mercado e no exterior, notadamente na Europa, que perceberam uma Alemanha finalmente capaz de fortes investimentos na área de defesa. Esse era o principal argumento de Merz para o pacote de estímulo econômico, o maior desde a queda do muro de Berlim: fazer frente a Vladimir Putin e ao novo cenário geopolítico europeu, em que os EUA, sob Donald Trump, deixavam de ser um parceiro confiável no apoio à Ucrânia contra a invasão russa.

Internamente, porém, Merz perdeu apoio popular, algo que ele mesmo esperava, e viu aliados reclamarem do que chamaram de concessões excessivas ao SPD e aos Verdes, que carimbaram parte dos € 500 milhões do pacote destinados à modernização da infraestrutura do país.

Liderados por Lars Klingbeil, que será vice-premiê e ministro das Finanças, os sociais-democratas comandarão sete pastas, incluindo áreas importantes, como Defesa e Trabalho. A CDU comandará a política imigratória e as relações internacionais, setores em que Merz traçou objetivos claros na campanha: controle de fronteiras e apoio à Ucrânia.

O futuro primeiro-ministro terá que lidar ainda com a crise política instalada na semana passada pelo Escritório Federal de Defesa da Constituição, o serviço de inteligência do país, que ratificou a classificação da AfD de partido de extrema direita.

A decisão é mais do que um rótulo, pois permite que as autoridades tenham mais poder para monitorar a legenda e seus integrantes. Nesta segunda-feira (5), a AfD entrou na Justiça contra o BfV, o nome do órgão na sigla em alemão, pedindo que a classificação seja não apenas revista, como proibida de ser usada na Alemanha. A AfD já teve pleito parecido negado anteriormente.

O episódio reacendeu o debate sobre o banimento da sigla, processo que, segundo observadores, pode aumentar ainda mais a popularidade da AfD no país.

Nesta segunda, Merz evitou se pronunciar sobre uma possível proibição da AfD, possibilidade prevista na Constituição alemã para partidos extremistas. Mas se posicionou contra a eleição de deputados do partido a postos de liderança nas comissões do Parlamento, chamando a hipótese de inimaginável.