SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No show que fez no festival Coachella, nos Estados Unidos, há duas semanas, Lady Gaga enfrentou ela mesma numa partida de xadrez durante a performance do hit “Poker Face”. A cena, no fim do primeiro ato da apresentação, simboliza o conflito interno explorado em seu novo disco, “Mayhem”, entre Gaga, a persona, e Stefani Germanotta, a pessoa por trás dela.
Essas duas forças, apresentadas como conflitantes, se conciliam na reta final do show, quando ela se aceita por completo cantando “Born This Way”. A artista que se apresenta num megashow gratuito na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, neste sábado (3), é formada pelas duas personagens que interpreta no palco.
Mas nem sempre elas conviveram juntas, e a primeira passagem de Gaga pelo Brasil, em 2012, é prova disso. Na ocasião, a cantora representava o que havia de mais ousado no mundo do pop. Quando despontou para a fama em 2008 e 2009, com os discos “The Fame” e “The Fame Monster”, ela era uma figura misteriosa, que adotava um visual andrógino e aproveitava aparições públicas para fazer provocações.
Na premiação VMA, da MTV dos Estados Unidos, em 2010, ela causou choque ao usar um vestido feito de pedaços de carne crua. Disse que era um protesto contra uma política do país de não permitir que soldados do Exército americano se declarassem homossexuais.
Nesse mesmo período, Gaga dava respostas vagas quando questionada se era uma pessoa intersexo, o que era chamado de hermafrodita na época. Era uma mentira, mas a cantora usou os boatos tanto para afrontar o público quanto para dar forças às pessoas com essa característica.
É uma postura que dialoga com sua obra naquela virada de década. Se Gaga ascendeu ao sucesso com músicas dançantes e de batidas eletrônicas, casos de “Just Dance” e “Poker Face”, no disco “The Fame Monster” ela aparecia lidando com temas mais obscuros na letra de “Bad Romance”, sua persona deseja o “horror” de alguém, quer um romance ruim com uma pessoa “feia”, um “bandido”.
A música “Monster” cravou a maneira como a artista é conhecida até hoje a “mother monster”, ou mãe monstro, com seus conhecidos como “little monsters”, os monstrinhos. Ali, Gaga se apresentava como uma espécie de Madonna do novo século, uma estrela pop provocadora mais estranha do que a antecessora e disposta a ser uma diva dos esquisitos.
Gaga não tinha o tipo físico preferido da indústria da música pop era magra e baixinha, sem a imponência de Beyoncé, Rihanna ou mesmo de Madonna. Ela captava os olhos do público vendendo uma estranheza travestida de exuberância, em especial nos clipes numa era em que a MTV ainda dava as cartas na televisão, com coreografias que até hoje são febre nas pistas de dança.
Especialmente para o público gay, mas para qualquer um que não se sentia bem com as convenções sociais vigentes, Gaga significava libertação. O próprio uso da palavra “monstro” servia como subversão da maneira com que parte da sociedade via e ainda hoje vê pessoas que fazem parte da LGBTQIA+. Tudo isso desembocou em “Born This Way”, faixa-título do disco de 2011 que se tornou um hino de aceitação.
Quando pisou no Brasil pela primeira vez, Gaga ainda era orgulhosamente aquela monstrinha. As filas de seus shows, em São Paulo, Porto Alegre e no Rio de Janeiro, foram verdadeiros desfiles de looks tão extravagantes quanto a própria apresentação, em que a cantora saía de dentro de uma vagina gigante para cantar “Born This Way” e era colocada pelos dançarinos em um moedor de carne em “Poker Face”, na qual usava a famosa roupa do VMA.
Os shows não lotaram, os ingressos de todas as datas encalharam e acabaram vendidos em promoções do tipo duas entradas pelo preço de uma. Tratada pela imprensa brasileira como uma pessoa excêntrica e de difícil trato, ela parecia só se preocupar com os fãs. “Eu não sou um alienígena, nem homem, nem mulher. Eu sou você, e dividimos as mesmas esperanças, os mesmos desejos e angústias”, a cantora disse no estádio do Morumbi, na capital paulista.
De lá para cá, muita coisa mudou. Gaga lançou “Artpop” em 2013, seu disco conceitual e um tanto confuso, recebido de maneira fria pela crítica e pelo público. Desde então, ela foi se distanciando do pop mais sombrio e passou a se apresentar mais comportada para entrar no “establishment” artístico americano. Passou também a alcançar um público mais amplo, angariando em especial o respeito de gente mais velha e conservadora, antes avessa a seu universo artístico.
Gaga nos últimos anos se provou uma cantora tecnicamente admirável, tendo gravado álbuns inteiros de jazz ao lado de Tony Bennett. Também fez um disco dedicado ao country ”Joanne”, de 2016, que ela traria ao Rock in Rio no ano seguinte, mas cancelou o show devido a complicações de sua fibromialgia, doença caracterizada por uma dor generalizada e crônica. Em 2019, a artista emplacou um hit arrasa-quarteirão num dueto com Bradley Cooper, “Shallow”, gravada para o remake do filme “Nasce Uma Estrela”, que ela protagonizou.
Da posse do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em 2021, à abertura das Olimpíadas de Paris, no ano passado, Gaga se tornou uma espécie de “arroz de festa” em premiações e eventos tradicionais. Esteve algumas vezes no Grammy e também no Oscar, em que concorreu em 2019 ao prêmio de melhor atriz, por “Nasce uma Estrela”. No cinema, ela ainda interpretou Arlequina em “Coringa: Delírio a Dois” e fez a música tema do filme “Top Gun: Maverick”.
Em paralelo a tudo isso, Gaga ficou noiva pela terceira vez agora, com o empresário Michael Polansky, com quem está junto há cinco anos, e tem dito em entrevistas que o relacionamento a ajudou a superar um período sombrio de infelicidade. Falando de suas personas, é como se a Stefani tivesse se sobreposto à Lady Gaga em sua vulnerabilidade e busca por reconhecimento de uma elite da classe artística.
“Chromatica”, seu disco de 2020, veio depois de ela afirmar que estava sofrendo de depressão e marcou o retorno da cantora ao pop eletrônico mais pesado de seus primeiros discos. Era a pista de dança como uma fuga para angústias existenciais ela tratou de traumas em músicas como “Replay” e se disse presa no inferno da fama, tema recorrente em sua obra, em “Fun Tonight”.
Gaga agora volta ao Brasil mais conhecida, com dois hits em alta rotação a dançante “Abracadabra” e a romântica “Die With a Smile”, uma parceria com Bruno Mars. Assim, ela deve fazer o maior show de toda sua carreira, com previsão de 1,6 milhão de pessoas na plateia, segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro.
Não se sabe o roteiro da apresentação, já que ela terá duas horas e meia de duração, 30 minutos a mais do que no Coachella e em dois shows feitos no México na semana passada.
Nesses shows, divididos em cinco atos, a artista fez uma espécie de ópera pop que lembra um teatro musical, no qual ela abusa de seu lado atriz em um cenário neoclássico e explora a dualidade de suas personas na narrativa.
No Rio, a estrutura do show deve ser parecida, mas há expectativa de que o repertório seja encorpado por hits deixados de lado na América do Norte entre eles “Applause”, “Telephone”, “Just Dance” e “You and I”. Até porque, com exceção de “Shallow”, Gaga nas apresentações anteriores só tocou músicas de sua primeira fase e do álbum mais recente, ignorando completamente as canções de “Artpop”, “Joanne” e “Chromatica”.
Conceitualmente, a decisão reforça como a sua fase atual, representada por uma obra autorreferente como “Mayhem”, marca uma reconexão da artista com a energia estranha e ousada que fez dela o monstro mais venerado do planeta. De certa forma, ainda que hoje tenha apelo para toda a família, é aquela mesma ousadia, pulsando em batidas eletrônicas, que deve reinar nas areias de Copacabana.
LADY GAGA NO RIO DE JANEIRO
– Quando Sáb. (3), às 21h45
– Onde Praia de Copacabana
– Preço Grátis