SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um grupo se reúne diante de três músicos que cantam e tocam um violoncelo, um violão e um violino. Com as mãos erguidas e os olhos fechados, quase todos no salão entoam o refrão de um louvor. Poderia ser um culto evangélico comum, com a exceção de que ele ocorreu na Casa Branca, que tem recebido cada vez mais eventos religiosos desde que o presidente Donald Trump assumiu o segundo mandato.
Nesta quinta-feira (1º), por exemplo, Trump, líderes religiosos e membros do governo se reuniram no Jardim das Rosas para comemorar o Dia Nacional da Oração. Durante o evento, o republicano assinou um decreto para estabelecer uma Comissão de Liberdade Religiosa que incluirá, segundo comunicado da Casa Branca, funcionários federais, representantes de religiões diversas e especialistas.
O vídeo com a cena descrita no início foi publicado pelo cantor e compositor gospel Chris Tomlin, um dos principais nomes da música cristã americana -é dele o louvor “Holy Forever”, interpretado durante a cerimônia, pelo qual ele recebeu uma de suas 15 indicações ao Grammy Awards.
Os cultos na residência presidencial fazem parte de um forte apelo à base cristã conservadora que impulsionou a volta de Trump ao poder. Em fevereiro, o republicano assinou um decreto que institui a Secretaria para Assuntos da Fé Cristã, vinculado ao Conselho de Política Doméstica da Casa Branca e que tem a missão de fortalecer a atuação de instituições religiosas nas políticas públicas.
“As organizações religiosas têm uma capacidade única de transformar comunidades de maneira que o governo muitas vezes não consegue”, diz o texto do decreto.
Uma das tarefas da Comissão de Liberdade Religiosa estabelecida por Trump nesta quinta será aconselhar a secretaria e o conselho sobre políticas de liberdade religiosa, recomendando ações executivas ou legislativas para protegê-la, de acordo com a Casa Branca.
“Políticas federais e estaduais recentes têm enfraquecido esse direito [à liberdade religiosa] ao atacar a liberdade de agir conforme a própria consciência, impedir que pais enviem seus filhos a escolas religiosas, ameaçar o financiamento e o status de entidades sem fins lucrativos baseadas na fé, e excluir grupos religiosos de programas governamentais. O Departamento de Justiça do governo anterior direcionou suas ações contra cristãos pacíficos, ao mesmo tempo em que ignorou ofensas violentas e anticristãs”, diz o texto.
O movimento também é simbolizado por um “café da manhã nacional de oração”, no qual Trump e outros integrantes de sua equipe se reúnem com líderes religiosos, reforçando a imagem de um governo alinhado com valores cristãos. Esses eventos têm servido para promover uma agenda religiosa mais presente e visível no centro da política pública.
Nomeada para chefiar a nova secretaria, a pastora evangélica e apresentadora de TV Paula White-Cain liderou iniciativas semelhantes durante o primeiro mandato de Trump (2017-2021). Conhecida por ser conselheira espiritual do presidente, ela defende que a repartição seja um “canal direto entre a fé e o poder público”, com atenção especial a igrejas e organizações cristãs que não estão habituadas a lidar com programas federais, mas que prestam serviços comunitários considerados eficazes.
“Durante anos, os cristãos foram perseguidos por expressar suas crenças, seja em instituições públicas, seja no setor privado”, disse Trump ao anunciar a criação da secretaria, no dia 6 de fevereiro. “Isso acabou. Estamos restaurando a liberdade de expressão e a centralidade da fé na vida americana.”
Uma das tarefas da secretaria será a realização de uma força-tarefa para investigar casos de cidadãos e líderes religiosos que afirmem ter sido vítimas de hostilidade institucional devido a suas crenças. Segundo a procuradora-geral Pam Bondi, escalada para liderar a ação, as diretrizes serão aplicadas com rigor em todas as agências federais.
As medidas foram celebradas por líderes cristãos conservadores como um cumprimento das promessas de campanha feitas por Trump. “O presidente está organizando o governo federal para trabalhar lado a lado com as igrejas, ajudando famílias, defendendo os valores da vida e promovendo a autossuficiência”, disse Tim Head, diretor da Coalizão Fé e Liberdade, grupo que atua como ponte entre igrejas cristãs e o Partido Republicano.
O decreto prevê ainda que a nova secretaria atue como intermediária para facilitar o acesso de organizações religiosas a editais federais de financiamento, o que pode representar um avanço concreto de igrejas no provimento de serviços sociais historicamente geridos por ONGs seculares ou agências públicas.
Embora amplamente identificado com a base cristã conservadora, Trump pertence oficialmente à tradição presbiteriana, uma denominação protestante historicamente influente nos Estados Unidos. A filiação religiosa, porém, nunca foi central em sua biografia até a entrada na política, quando passou a articular alianças com lideranças evangélicas e pentecostais como estratégia de mobilização eleitoral.
O movimento para integrar mais diretamente as igrejas à política pública, no entanto, levanta uma questão fundamental sobre a separação entre Igreja e Estado. Nos EUA, a Primeira Emenda da Constituição afirma que o governo federal não pode estabelecer uma religião oficial nem interferir nas práticas religiosas dos cidadãos. Esse princípio da laicidade tem sido um dos pilares da democracia americana, buscando assegurar que nenhuma religião seja privilegiada ou que suas crenças sejam impostas ao conjunto da sociedade.
Embora o governo de Trump afirme que sua intenção é apenas proteger a liberdade religiosa e dar mais liberdade para as organizações cristãs, especialistas em direito constitucional apontam que uma crescente fusão entre governo e religião pode corroer esse princípio, estabelecendo uma linha tênue que pode, no futuro, levar a um risco de governo teocrático -modelo em que o Estado não apenas interage com a religião, mas subordina suas políticas à doutrina, o que pode minar os direitos de cidadãos de outras crenças.
Entidades como os Americanos Unidos pela Separação entre Igreja e Estado criticaram as ações do governo Trump, alertando para o perigo de um regime onde a fé se torna um pilar central da estrutura governamental. Em nota, a organização afirmou que “nenhum grupo religioso deve receber tratamento preferencial do governo federal, sob pena de transformar a fé em instrumento político”.
Mesmo sob críticas, a estratégia parece seguir o cálculo político que levou Trump de volta à Casa Branca: uma aliança sólida com a base cristã conservadora, que representa cerca de um quarto do eleitorado americano e votou majoritariamente a seu favor em 2024. Ao institucionalizar a fé cristã em estruturas de governo, Trump reforça sua identidade política e consolida a religião como ferramenta central de seu governo.