SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Inaudito: nunca ouvido; incrível, espantoso”. Sem ser contrariada, a definição de dicionário pode ser ampliada de modo a envolver variados aspectos de uma apresentação musical, da escolha do repertório à performance, da relação com o público ao contato com o espaço físico e a acústica.

Tais efeitos emergem, por exemplo, das sonoridades quase “apalpáveis” de “Tátil” (2007), composição de Valéria Bonafé, tocada após o contido “Romance op.21 nº1”, escrito por Clara Schumann em 1855.

Essa contrastante sequência de obras abriu o recital da pianista Lídia Bazarian em São Paulo no último domingo (27). O espetáculo é parte da programação da série “Música Inaudita”, que se realiza no Ágora Teatro, na Bela Vista. Com curadoria do contrabaixista Alexandre Rosa, a temporada prevê um concerto por mês, sempre aos domingos às 11h da manhã.

Ao longo do ano, o foco estará sobretudo na música de câmara (em maio haverá música para clarinete, cello e piano), de diferentes épocas (da música renascentista à improvisação criada em tempo real) e estilos (do romantismo de Mendelssohn às serestas de Tia Amélia), e que aposta também na justaposição de clássicos a autores brasileiros da atualidade (como em obras de Beethoven e Luiz Amato, dividindo o palco em agosto).

Programações de música clássica dos mais relevantes centros mundiais nunca se resumem aos grandes teatros. Espaços pequenos e aconchegantes —como o Ágora, teatro dirigido por Celso Frateschi e Sylvia Moreira– frequentemente se especializam em repertórios e propostas alternativas ao “mainstream”. A ampla receptividade de público observada no último domingo demonstra que São Paulo tem essas demandas, e sabe bem como atendê-las.

Com o público ao redor do palco em semicírculo, o diminuto espaço permite a intimidade da música acústica, e o despojamento cênico –essencialmente teatral– beneficia a apreciação da música instrumental.

Tal como fazia Caio Pagano, seu professor na USP, Lídia Bazarian consegue aliar um amplo domínio pianístico à disposição infinda de aprender músicas novas –missão que ela tomou para si, tendo em sua trajetória inúmeras estreias e primeiras gravações.

Várias das (tão diversas) peças do programa foram inspiradas pelo “elemento água”: da obra de Bonafé –que poderia emergir dos aforismos sonoros maduros de Willy Corrêa de Oliveira–, ao mar de “Navio Negreiro”, poema de Castro Alves tomado como ponto de partida de “Agar”, composição de Marcos Branda Lacerda, até se explicitar em “Wasserklavier” (piano-água, em alemão), extraordinária miniatura do italiano Luciano Berio.

Foi inaudita, igualmente, a associação entre o simbolista russo Scriabin (1872-1915), de quem Bazarian interpretou alguns dos “Prelúdios” op.11, e compositores direta ou indiretamente ligados à academia musical paulista, com destaque para a própria USP.

Mas não só: nos três movimentos dos instigantes “Trópicos das repetições”, Silvio Ferraz evoca e consolida múltiplas escolas, e não apenas musicais. Estão lá, trabalhados artesanalmente e amarrados filosoficamente, o pianismo estelar de Almeida Prado, as eclusas de Paul Klee, os redemoinhos de Leonardo da Vinci, e até uma melodia singela que teima em jorrar do caos.

“Ressonâncias”, da carioca Marisa Rezende, teve a função –após Berio– de desdobrar o programa, conduzindo-o da metade para o seu momento final. A peça de 1983 já pode ser considerada um clássico do piano brasileiro contemporâneo, tendo sido muitíssimo executada nas homenagens aos 80 anos da compositora, completados no ano passado.

Suas três seções interligadas, equilibrando cálculo e espontaneidade, ressoam a voz forte e discreta da autora. Num modesto piano de armário –que teimava em mostrar o que deveria ficar oculto e em esconder o que se impunha desvelar–, corajosa, Lídia Bazarian evidenciava que o inaudito não está apenas nas histórias em si, mas no modo como se pode contá-las.

SÉRIE ‘MÚSICA INAUDITA’

– Quando Uma vez por mês, aos domingos, às 11h

– Onde Ágora Teatro – Rua Rui Barbosa, 664, São Paulo

– Preço De R$ 40 a R$80