FOLHAPRESS – Jesuíta Barbosa surgiu nacionalmente exibindo um espantoso talento em “Tatuagem”, de Hilton Lacerda, de 2013. Mas suas performances seguintes, apesar da invariável qualidade, deixavam sempre a impressão de que ainda faltava alguma coisa talvez o personagem certo para ele mostrar a amplitude do seu potencial. Sobretudo na TV, que sanitizava suas características mais primais, animalescas, que o distinguem dos colegas de geração.
“Homem com H” está aí para mostrar que Ney Matogrosso era o papel que lhe faltava. Como nunca, o ator demonstra segurança, ímpeto, crença em sua capacidade. Sua caracterização impressiona Barbosa surge com a mesma silhueta delgada, os olhares desafiadores e a fisicalidade de Ney, esse artista que se define como meio homem meio bicho. Mas não o imita, pura e simplesmente. É um Ney parecidíssimo com o da vida real, mas um Ney todo pessoal de Barbosa.
Biografias musicais tendem a aprisionar a trajetória dos protagonistas em estruturas narrativas muito parecidas e desgastadas. O longa de Esmir Filho também segue uma base convencional, mas se distingue em diversos aspectos de “biopics” mais corriqueiras. Tem mais vibração, escolhas estéticas menos óbvias e uma maior constância de ritmo. O filme pulsa.
Logo no início, vemos o pequeno Ney na mata, como se fosse parte dela. As cenas são entrecortadas pelo cantor já adulto, em um palco, igualmente à vontade naquele local. Eis aí o ponto do filme, Ney Matogrosso sempre teve enorme afinidade com o mundo natural, onde os animais só conseguem viver em liberdade. E, quando no palco, aquele mesmo Ney se lança no desconhecido com o mesmo desprendimento que uma ave em pleno voo. Impossível de se imaginar acuado, ou morreria o artista e talvez até o homem.
É sob a égide dessa necessidade de ser livre que Ney se formatou, enquanto ser humano e enquanto figura pública. Liberdade, inclusive, para nunca levantar bandeiras. Sua luta política sempre foi a de um lobo solitário, passando sua mensagem sobretudo por sua atitude no palco e pelo seu repertório.
O filme transmite essa mensagem com bastante destreza, até paixão. Esmir Filho consegue ter soluções interessantes para a maior parte das situações, e em dois momentos ele recorre a referências diretas a obras de outros cineastas que, em um primeiro instante, soam como saídas fáceis para o que ele próprio não teria conseguido resolver enquanto artista.
Curiosamente, porém, essas cenas se convertem em dois dos pontos altos do filme, porque ultrapassam a mera citação cinéfila e se tornam uma reapropriação e um prolongamento do que outros cineastas já fizeram.
Em uma delas, quando alude a “Inverno de Sangue em Veneza”, de Nicolas Roeg, de 1973, vemos cenas em que Ney e seu primeiro namorado fazem sexo, intercaladas com imagens imediatamente após o coito, com ambos se vestindo. Em Roeg, são trechos bonitos, líricos, sobre a rotina de um relacionamento feliz, mas no novo contexto da cena, existe o senso de uma relação amorosa que, de saída, já está fadada à rotina, às regras dos casais normativos comuns. No caso de uma alma livre como a de Ney, isso se converteria em um aprisionamento inviável.
A outra é quando Ney está na Aeronáutica, e os corpos masculinos se exercitando são uma piscadela a Claire Denis e seu “Bom Trabalho”, de 1999. Dez entre dez cineastas queer adoram fazer essa mesma alusão quando querem mostrar torsos de homens desnudos, mas Esmir Filho vai além. O quartel idealizado pelo cineasta é sobretudo um ambiente de homoerotismo fervente, sem nada de um local repressor.
Ney e os colegas conversam como se estivessem em um eterno flerte, uma dança de acasalamento não consumada. Ali, o filme ilustra o desejo ao mesmo tempo proibido e escancarado no meio militar de maneira não naturalista, estilizada, em um registro sexy e até certo ponto delicado. Além de um tanto acima do tom, é bem verdade, mas as cenas estão entre as melhores do longa.
Mas “Homem com H” é um filme fundamentalmente comercial, então chamas criativas como essas não podem passar de centelhas. Assim como a sexualidade das cenas mais impudicas que são muitas também precisa seguir certas regras de incandescência. Vê-se quase tudo nas cenas de sexo, mas da genitália humana há apenas, literalmente, sombras.
Frustra um pouco ver o filme ir tão longe em sua liberdade sexual, mas paralisar sua audácia quando a câmera capta mais do que o grande público toleraria; afinal, ainda não se pode ser totalmente livre. Ainda assim, o longa já configura um belo avanço.
HOMEM COM H
– Avaliação Muito bom
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação 16 anos
– Elenco Jesuíta Barbosa, Romulo Braga e Hermila Guedes
– Produção Brasil, 2024
– Direção Esmir Filho