FOLHAPRESS – Até aqui, o cinema de Lírio Ferreira tem como marca clara encenar a oposição entre dois polos de poder e de experiências. Assim, são lugares onde o Sul e Sudeste encontram o Nordeste e o Norte. Personagens saem do Rio de Janeiro ou de São Paulo para reencontrar o seu outro lugar, de origem, de adoção ou o que for.

Ao mesmo tempo, ali se chocam duas instâncias de poder, sendo uma delas a dos tradicionais coronéis nordestinos. Entre o coronel e o inimigo mais visível —os indígenas de “Acqua Movie”, por exemplo— surge uma força externa, sulista, progressista.

Em “Serra das Almas” o conflito se torna mais complexo. Existe ali uma jornalista que vem do Rio de Janeiro, mas vive em Recife, Samantha, papel de Julia Stockler. Ela acumula as funções de repórter ambiciosa, não desprovida de talento, e amante do patrão. No momento, está no rastro de um caso de contrabando de diamantes.

Esse é o nó da narrativa, em que, ao contrário dos filmes anteriores, não percebemos (não de imediato, pelo menos) qual é a relação de força entre os diversos implicados na trama. Existe de um lado a jornalista que busca sua matéria espetacular, de outro um senador que, está na cara, é o beneficiário do esquema de contrabando. E, por fim, os pequenos marginais de Serra das Almas, o lugar onde se passa a maior parte da trama.

A trama não se desenrola facilmente. Há vários tempos envolvidos e eles não se revelam linearmente. Podemos ir para frente ou para trás. Certamente esse procedimento faz de “Serra das Almas” em grande medida um filme de mistério. Quem move os cordéis de toda essa história? O senador, a mídia (aqui representada pela repórter, mas não só), os capangas? O Estado é um ausente ao mesmo tempo infiltrado nas instituições.

Tudo o que move o filme evoca antigos filmes, de “Cidadão Kane” a “Horas de Desespero”, passando por “O Tesouro de Sierra Madre”. “Kane” vem de um brinquedo que surge ainda no início e anuncia a narrativa fragmentada. De “Horas de Desespero” é possível lembrar por conta de um sequestro que acontece logo no início do filme. De “Sierra Madre” pode-se reter a sensação da busca de apropriar-se de uma futura em permanente ameaça.

Há ainda uma referência forte, mas que não consigo lembrar de algum filme que essa imagem evoque: trata-se de um grupo de fantasiados que tanto pode ser uma evocação circense, ou carnavalesca, mas que certamente representa um pesadelo para Vera, personagem vivida por Mari Oliveira.

Haveria muito a dizer sobre isso, mas poderia revelar coisas demais sobre o final. O importante, no caso, é notar uma inflexão nada otimista de Lírio Ferreira —nem o rústico nem o sofisticado, nem o Sul nem o Nordeste, nem o rico nem o pobre. Parece que suas forças parecem voltadas todo o tempo à destruição.

Desta vez, o filme não entrega qual a força dominante da história. Em troca, ele introduz um outro tipo de oposição de forças: o masculino e o feminino, cabendo a este apontar ao que ainda resta de passível de redenção na selvageria geral.

Por fim, impossível não notar a qualidade da direção de atores e, claro, do elenco, dos principais até os pequenos papéis. A montagem de André Sampaio traz uma precisão enorme a um filme em que seria fácil perder-se no tempo.

Impossível também não notar que os dramas psicológicos a que por vezes os personagens se dedicam ajudam muito pouco e atrapalham o andamento do thriller. Nesse sentido, a personagem mais misteriosa é também a mais bem resolvida: é a de Vera, que abre o filme da maneira mais estranha.

Primeiro, ela se banha em um rio e, ao sair, foge de uma simpática vaca como se tivesse pela frente um touro bravo. Não entendemos nada. Mais tarde, ela terá uma espécie de pesadelo com as figuras fantasiadas que em certo momento aparecem em sua vida. Do mesmo modo, a horas tantas, será capaz de empunhar uma arma.

Sobre esta personagem saberemos tudo, mas só através das imagens. Nada de drama pessoal. É talvez, de tudo que vemos, o que será, possivelmente, o mais memorável neste belo filme.

SERRA DAS ALMAS

– Muito bom

– Quando Em cartaz nos cinemas

– Classificação 16 anos

– Elenco Julia Stockler, Mari Oliveira e Ravel Andrade

– Produção Brasil, 2024

– Direção Lírio Ferreira