SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nesta semana em que o governo de Donald Trump completa cem dias, Jon Voight quer se encontrar com o presidente. O ator veterano de filmes como “Perdidos na Noite” e o republicano devem debater como restaurar a chamada era de ouro de Hollywood, que hoje vê uma crise nas bilheterias.

Junto de Mel Gibson e Sylvester Stallone, Voight foi nomeado embaixador do presidente em Hollywood, “um lugar maravilhoso, mas muito problemático”, nas palavras de Trump. A Califórnia é, afinal, um reduto democrata de celebridades que apoiaram sua adversária Kamala Harris. Voight afirmou à agência de notícias Reuters que vai propor um plano de incentivos fiscais federais para “trazer empregos de volta a Los Angeles”.

Essa infiltração do governo em Hollywood, porém, é vista por especialistas como mais uma entre várias ações de Trump que compõem uma ofensiva em direção ao setor cultural americano, na tentativa de controlar o que a população acessa nos cinemas, em museus e bibliotecas. Elas se somam ao pacote de tarifas do presidente que deixou as cabeças por trás do mercado da arte de cabelo em pé.

O desejo de Trump é que as artes valorizem um suposto passado belo e grandioso dos Estados Unidos. Como em um monumento aos deuses na Grécia Antiga, estátuas de George Washington, Mark Twain e Martin Luther King Jr. serão dispostas no Jardim Nacional aos Heróis Americanos, projeto ainda sem local definido, mas orçado em US$ 64 milhões, algo que pode se concretizar com o uso de verbas retiradas de museus e bibliotecas.

O projeto receberá recursos do Fundo Nacional para as Humanidades, conhecida como NFH, agência federal que financia museus, monumentos históricos e projetos de pesquisa pelo país. Em tese, o órgão é independente do governo, mas neste mês anunciou corte de 85% de seus repasses após seu diretor interino, Michael McDonald, dizer que os fundos seriam direcionados às prioridades da Casa Branca. Entre as instituições que dependem da NFH está a National Gallery, em Washington, um dos museus mais importantes do país e responsável por guardar obras de Leonardo da Vinci e Van Gogh.

Em março, Trump incluiu o Instituto de Serviços de Museus e Bibliotecas, o IMLS, em uma lista de sete agências independentes responsáveis por distribuir dinheiro federal que devem ser desmanteladas “o máximo possível permitido em lei”. O IMLS é responsável por repassar, anualmente, cerca de US$ 200 milhões para 123 mil bibliotecas e 35 mil museus espalhados pelo país.

O republicano assinou também uma ordem executiva em que acusa museus de reescrever a história americana ao exibirem mostras com temáticas queer ou com olhar crítico para temas como raça e gênero. O documento abre caminho para a reconstrução de monumentos confederados -motivo de protestos do movimento antirracista Black Lives Matter após a morte de George Floyd, em 2020.

Entre os museus repreendidos está o Smithsonian American Art Museum, na capital federal, que tem uma das mais importantes coleções de arte do mundo. A nova ordem proíbe “gastos com exposições que degradem os valores americanos, dividam os americanos com base em raça ou promovam ideologias inconsistentes com a lei e as políticas federais”.

“A intenção é cristalina: eles querem branquear a história americana e reescrevê-la a partir de uma perspectiva nacionalista branca que apaga negros, mulheres e pessoas LGBTQIA+. Qualquer coisa que vise educar sobre as histórias de racismo agora é considerada uma ameaça”, diz Julia Bryan-Wilson, professora de arte contemporânea e estudos LGBTQ+ da Universidade de Columbia, em Nova York.

Em janeiro, com mais uma canetada, Trump já tinha encerrado o programa de Joe Biden que impulsionava iniciativas de diversidade em instituições federais, o que levou ao cancelamento de algumas exposições, entre elas uma que contava histórias de pessoas queer no Caribe colonial, no Museu de Arte das Américas. Em paralelo, funcionários do Smithsonian disseram que artefatos começaram a ser retirados do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, em Washington.

Trump também determinou que estilos mais clássicos de arquitetura fossem aplicados a edifícios públicos, em rejeição ao modernismo. A ordem é rechaçada pelo Instituto Americano de Arquitetos.

Quem também já contra-atacou as medidas do republicano é a Associação Americana de Bibliotecas, que processou Trump. O mesmo foi feito por procuradores-gerais de 21 estados. Eles argumentam que as ações são ilegais, visto que é o Congresso que deve decidir como será feito o repasse de verbas a agências federais.

“Embora a ordem executiva para eliminar o IMLS não censure livros diretamente, ela representa um ataque às bibliotecas dos Estados Unidos, limitando o acesso das pessoas a recursos e serviços de informação essenciais”, afirma a presidente da associação, Cindy Hohl, à reportagem.

A censura a livros já virou tradição nos Estados Unidos. Células de ativismo conservador aplaudidos por Trump, como o Moms for Liberty, agem para banir livros que tratam de racismo, sexualidade e política de bibliotecas. Em estados como a Flórida, reduto republicano, esses grupos ganham lastro jurídico por meio de leis como a “Stop Woke Act”, que proíbe escolas e empresas de tocarem nesses assuntos.

Segundo a PEN America, organização que defende a liberdade de expressão na literatura, houve 10.046 casos de banimento de livros no ano passado, que afetaram 4.231 títulos. “Embora o número de contestações individuais a livros possa estar diminuindo, a quantidade de livros retirados das prateleiras não está”, diz Lee Rowland, diretor-executivo da Coalizão Nacional contra a Censura. “Isso provavelmente levará muitas instituições e artistas a se autocensurarem, seja para conseguirem financiamento, seja para continuarem existindo sem serem notados pelo governo”, acrescenta Elizabeth Larison, da mesma instituição.

No mês passado, um cinema em Miami Beach exibiu o filme “Sem Chão”, vencedor do Oscar de melhor documentário. O longa mostra a violência das forças israelenses sobre os palestinos. O prefeito Steven Meiner, então, anunciou que iria despejar o cinema, que fica num imóvel pertencente ao poder público, e bloquear uma verba de financiamento por ter exibido um filme que, em sua visão, é antissemita.

Ainda que Hollywood não dependa de financiamento estatal para continuar gerando bilhões de dólares por ano, a indústria também não quer queimar seu filme com Trump. “Na negociação internacional, ele protege a própria indústria. Nos Estados Unidos, o cinema está mais no campo da indústria do que da cultura”, diz José Roberto Sadek, especialista em cinema e professor da Fundação Armando Alvares Penteado. “Metade da população, mais ou menos, concorda com Trump. Essas pessoas são mercado. Pode ser que alguns temas polêmicos de comportamento sejam evitados por estúdios.”

Mas o anúncio de novas taxações para o comércio internacional no início do mês foi um baque e causou forte apreensão nos bastidores -especialmente em relação às possíveis réplicas dos países afetados, afirmam pessoas próximas à indústria em condição de anonimato. E a preocupação continua, ainda que Trump tenha congelado o tarifaço por 90 dias.

Até lá, será cobrada uma tarifa de 10% sobre as importações de todos os países -com exceção da China, que, aliás, detém o segundo maior público de cinema do mundo depois dos Estados Unidos. Como retaliação às tarifas de 145% para produtos chineses que entraram nos Estados Unidos, Pequim prometeu diminuir as importações de filmes americanos.

O plano tarifário de Trump deu um fim abrupto à sua lua de mel com bilionários, entre eles donos de big techs e serviços de streaming, como Jeff Bezos, dono da Amazon e do Prime Video, e Tim Cook, da Apple e do Apple TV+. Isso no momento em que vários países, inclusive o Brasil, discutem a regulamentação dessas plataformas, o que pode restringir as liberdades que essas empresas têm fora dos Estados Unidos e, consequentemente, sua margem de lucro.

O tarifaço amedronta também o mercado da arte. Afinal, foi a isenção que fez dos Estados Unidos um polo internacional de comercialização de obras -grandes galerias têm sede em Nova York, e a Art Basel de Miami se tornou a feira de arte mais próspera do mundo.

Se a taxação de Trump recair no setor, o impacto será enorme, diz Jones Bergamin, dono da Bolsa de Arte, a maior casa de leilões do Brasil. “Vai afetar muito as grandes galerias, que têm altos custos anuais. O volume de vendas vai cair, mas vão preferir não abaixar o preço das obras para não passar a sensação de que o artista está perdendo o valor”, diz. A baixa, ele acrescenta, ainda pode diminuir novas aquisições de museus como o Museu de Arte Moderna e o Guggenheim, que renovam seu acervo em grande parte com doações.

Não é por acaso que os artistas que mais têm se posicionado explicitamente contra Trump são astros da música, como Billie Eilish. A indústria musical depende pouco do apoio do governo, e a taxação quase não atrapalha seus negócios -hoje, os fonogramas são digitais e não pagam impostos de importação, e as estruturas de shows para turnês internacionais ficam a cargo do país anfitrião.