ARROIO DO MEIO, RS E ROCA SALES, RS (FOLHAPRESS) – “Uma tortura, aqui é um sufoco, um desespero total. Não sei se falo ou se choro.”
É dessa forma que o gari aposentado Reni da Rosa, 66, descreve a situação dele e da sua esposa, Noemia da Rosa, 65, um ano após as enchentes históricas que devastaram parte do Rio Grande do Sul na passagem de abril para maio de 2024.
À época, o casal teve a casa levada pela cheia do rio Taquari no município de Arroio do Meio (a cerca de 120 km de Porto Alegre). Depois da tragédia, os dois buscaram abrigo junto a familiares e até receberam, por meio de uma doação privada, um imóvel menor de madeira. O novo endereço, contudo, foi danificado por um novo temporal, segundo eles.
Com o revés, Reni e Noemia passaram a viver nos últimos meses em uma das moradias temporárias entregues pelo governo estadual em Arroio do Meio. O pequeno lar provisório lembra o formato de um contêiner: são 27 metros quadrados com dormitório, banheiro, sala e cozinha conjugadas em uma estrutura de aço galvanizado e concreto.
Reni diz agradecer por ter um teto e não passar as noites ao relento, mas lamenta o impacto da enchente. “É uma dor de cabeça. Tu não dorme porque não é o teu cantinho”, diz o aposentado, que sonha com a reconstrução da casa recebida como doação.
A exemplo do casal, milhares de gaúchos esperam lares definitivos um ano depois do maior desastre ambiental do estado.
Políticos, lideranças comunitárias e estudiosos afirmam que acelerar a entrega das residências em locais seguros é o principal desafio da reconstrução.
Balanço da CNM (Confederação Nacional de Municípios) apontou, em agosto, que as chuvas destruíram 9.300 habitações e danificaram outras 104,3 mil.
“Se pudesse eleger uma cicatriz da enchente, seria essa. Moradia é a principal”, diz o economista e pesquisador Ely José de Mattos, do laboratório de estudos PUCRS Data Social.
“Não é fácil fazer uma casa. É muito difícil lidar com habitação. Você precisa de terreno, infraestrutura, dinheiro e tempo”, acrescenta.
Até esta segunda-feira (28), 1.549 moradias foram contratadas e entregues por meio da modalidade Compra Assistida, do Minha Casa Minha Vida, conforme o secretário do governo federal para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Maneco Hassen.
Esse programa é voltado para famílias com renda de até R$ 4.700 que podem escolher imóveis já prontos e disponíveis no mercado, no valor de até R$ 200 mil.
Até o momento, o governo também autorizou a construção de 7.470 novas unidades habitacionais. Nesse caso, caberá às prefeituras a alocação dos moradores após o término das obras, segundo o secretário.
Com a ampliação das iniciativas nos próximos meses, a meta do governo federal é atender cerca de 20 mil famílias, acrescenta Maneco. Ele reconhece as dificuldades, mas diz que os processos ganharam velocidade nos últimos meses, após as eleições municipais.
“A moradia é nosso maior gargalo, até porque é um processo complexo por natureza. Estamos falando de moradia para mais de 20 mil famílias. Você não consegue fazer isso do dia para a noite.”
No âmbito do governo estadual, 1.300 casas definitivas estão com projetos de construção em andamento, de um total previsto de 2.235, conforme a Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária do Rio Grande do Sul. As primeiras devem ser entregues em maio.
A pasta afirma que a política habitacional do estado buscou inicialmente a oferta de lares temporários, em uma estratégia para desativar abrigos e dar uma moradia “mais digna” às famílias que estavam em espaços coletivos.
Na quarta (23), o Rio Grande do Sul ainda tinha 383 pessoas em abrigos, segundo painel do governo estadual. Trata-se de um patamar bem inferior ao do início do levantamento, em maio de 2024, quando o contingente era de 78,7 mil.
A secretaria também afirma que o estado desenvolveu, por exemplo, auxílio para a população com condições de arcar com financiamento habitacional, mas que não dispõe do valor de entrada para aquisição da casa própria, na quantia de R$ 20 mil.
“Tem um grau de complexidade, estamos falando de dezenas de milhares de residências atingidas em diversos municípios”, disse o governador Eduardo Leite (PSDB) em entrevista à reportagem.
“O estado estava começando a ter as suas próprias políticas habitacionais, quando, da noite para o dia, as enchentes trazem uma necessidade exponencialmente maior.”
AS COISAS ESTÃO BEM ATRASADAS, LAMENTA MORADORA QUE PERDEU CASA
A agente comunitária de saúde Simone Cardoso, 54, faz parte da população que aguarda uma moradia. A antiga casa dela e do marido foi derrubada pela cheia do rio Taquari há um ano no município de Roca Sales (a cerca de 140 km de Porto Alegre).
Com o prejuízo, os dois estão morando em um sobrado cedido por um amigo. Simone diz que buscou auxílio para a compra de uma nova casa, mas não conseguiu uma alternativa viável até o momento.
“As coisas estão bem atrasadas”, lamenta.
Conforme Simone, das 28 famílias que moravam na sua antiga rua, 25 tiveram as casas destruídas. Terrenos da vizinhança estão tomados por ruínas das construções e vegetação alta. É um cenário bem diferente do registrado no passado.
“É um problema regional. Não é só Roca Sales que está enfrentando essa morosidade, essa dificuldade, na liberação de casas”, afirma o prefeito Jones Wunsch, o Mazinho (PP), que assumiu o cargo em janeiro.
De acordo com ele, um levantamento recebido pela prefeitura indicou déficit de 535 residências, mas há famílias que buscaram novos lares por conta própria ou que saíram da cidade.
O prefeito estima que cerca de 2.000 pessoas deixaram Roca Sales após as enchentes, que já haviam levado destruição ao município no segundo semestre de 2023. Conforme a contagem do Censo Demográfico, o local tinha 10,4 mil habitantes em 2022, antes das catástrofes.
“A gente está tentando trazer moradias para cá para que as pessoas voltem. As empresas apostaram em ficar na cidade, mas estão com déficit de mão de obra. Então, a gente quer resolver esse assunto da habitação o quanto antes”, afirma Mazinho.
Em Arroio do Meio, o prefeito Sidnei Eckert (MDB) diz que há demanda por cerca de 700 casas para famílias atingidas pelas enchentes.
Na avaliação do gestor, que assumiu o cargo em janeiro, a falta de preparação do país para lidar com desastres climáticos, a burocracia e os gargalos de infraestrutura nos municípios dificultam uma entrega mais rápida das moradias.
“O grande desafio é o das casas. Enquanto não tiver as famílias nas suas casas, tu não podes estar tranquilo como gestor”, diz Sidnei, que está em seu terceiro mandato.