SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Zé Celso queria encenar “Senhora dos Afogados” desde os anos 1980, mas o projeto nunca saiu do papel. Ele considerava as peças de Nelson Rodrigues muito perfeitas o elevava ao Olimpo dos grandes dramaturgos, ao lado de Shakespeare, Tennessee Williams e Oswald de Andrade. Irretocável, em seu ponto de vista, não abria brechas para sua sua direção criadora, conhecida por devorar os textos e regurgitar interpretações originais.
Em 2023, ele decidiu tirar o projeto da gaveta, mas morreu em julho do mesmo ano, aos 86, após um incêndio no apartamento que dividia com Marcelo Drummond, Ricardo Bittencourt e Victor Rosa. Em 7 de julho, após um velório que rasgou a noite com festa, Zé Celso foi cremado em uma cerimônia privada em Itapecerica da Serra, na grande São Paulo. Na volta do rito, Drummond herdeiro simbólico e material do Oficina convidou Monique Gardenberg para dirigir a peça de Nelson, que estreia agora no Sesc Pompeia.
“Eu demorei para me dar conta que ele tinha feito o convite”, diz Gardenberg, logo após o primeiro ensaio da peça no Sesc Pompeia. Foi seu marido quem a avisou que ela havia deixado o amigo sem uma resposta.
“Senhora dos Afogados” conta a história da rica família Drummond, com suas mulheres pudicíssimas ”se envergonham do próprio parto”, diz uma personagem, e suas filhas que, uma a uma, vão desaparecendo afogadas no mar. O pai da família, Misael, é juiz, mas logo será ministro. Sobre ele, paira a acusação de ter assassinado uma das prostitutas do cais, com quem, dizem as más-línguas, ele traia sua mulher, dona Fernanda.
A diretora define a obra como uma tragédia delirante, ao estilo de “Macbeth”, de William Shakespeare. Os arquétipos dos personagens vêm das tragédias gregas. Moema, com sua síndrome de Elektra, detesta as irmãs e a mãe, que disputam a atenção de seu pai.
“Mas o que determina a tragédia do Nelson não é um desígnio divino, como na grega, mas inconsciente”, afirma Gardenberg. “É uma peça da fatalidade, dos afetos, no seu pulsar mais humano e trágico o herói é conduzido para o abismo pela própria incapacidade de dominar o seu ser. É muito violento e, ao mesmo tempo, fascinante.”
O palco que emoldura as cenas terríveis de Nelson é sóbrio. Em um de seus lados, o mar é projetado em fitas brancas que formam uma tela. Poucos objetos permanecem sobre ele, um espelho, uma cama, algumas cadeiras. Tudo iluminado por luzes dramáticas.
“É a peça em que ele põe a luta de classe de um jeito mais patente. Põe uma família de 300 anos e um puteiro”, afirma Drummond. A montagem do Oficina ampliou o coro de quatro vizinhos e quatro mulheres da vida do texto original para um bem maior, que preenche o palco.
“Esse texto é o retrato da classe dominante, hipócrita, classista, elitista, que faz milhares de alusões à religião, mas é capaz de ser mandante de um crime. Isso é o que mais precisa ser criticado hoje, no Brasil”, complementa Gardenberg.
Ela dirige para o cinema a mais tempo do que para o teatro, responsável por filmes como “Benjamin”, de 2003, e “Ó Pai, Ó”, de 2007. Da sétima arte, carrega algumas manias. Prendeu os atores do Oficina, tão acostumados a ir o quanto antes para o palco, na mesa de leitura, onde passaram todos um mês estudando o texto antes de começarem a ensaiar.
Uma das criadoras dos festivais Free Jazz e do C6 Fest, ela trabalha há décadas também com a música, e não descuidou da trilha sonora. A mistura eclética tem Amália Rodrigues, Sigur Rós, Erasmo Carlos, Verdi, Schubert, Jhonny Hooker e tambores.
Para erguer a peça, a diretora reuniu pessoas importantes para Zé Celso. “Eu quis que fosse realmente assim, essa grande rede de afeto”, afirma.
Trouxe de volta gente que não atuava para o grupo há anos, como Leona Cavalli, que interpreta dona Eduarda, e Giulia Gam, uma das vizinhas, além de Cristina Muttarelli, Michele Matalon e Muriel Matalon.
E a própria Gardenberg diz dever muito ao diretor. Ela se aproximou de Zé Calso em 2006, quando ele foi internado por problemas do coração. Por coincidência, “Boca de Ouro”, única peça rodriguiana encenada pelo Oficina, estava em cartaz. Ao saber da notícia, ela ligou para Drummond perguntando como poderia ajudar, e teria ouvido algo como, “Quer ajudar o Zé? Coloca ele de volta no palco”.
Ela colocou, e por anos produziu peças para a companhia. Em 2020, dirigiu, junto a Zé Celso, a versão filmada de “Esperando Godot”, adaptação da peça de Samuel Beckett. “Ela sempre se preocupou muito com o Zé. Às vezes ele estava duro, ela dava um jeito de ajudar”, diz Drummond.
Foi Zé Celso quem disse a Gardenberg para viver sua perda na arte quando sua irmã e parceira na produção, Sylvia Gardenberg, morreu em 1998, e quem a convenceu de que ela estava pronta para dirigir sua primeira peça, “Os Sete Afluentes do Rio Ota”, de Robert LePage, em 2002.
“Zé sempre foi o meu ponto de referência na vida. Toda vez que eu achava que eu estava indo para um caminho que não era o meu, eu ia para o Oficina e me achava de novo num lugar da arte real, feita com toda a ferocidade que ela precisa.
Para manter o teatro operando, Drummond conta com editais públicos e privados, além da bilheteria, suficiente graças ao grande sucesso das peças da companhia. O grupo está sem patrocínio desde 2016, quando perdeu o apoio da Petrobras, após ais de dez anos. O diretor atribui a falta de investimento no teatro à disputa pelo parque do Bixiga contra o antigo Silvio Santos, morto no ano passado, e ao governo de Michel Temer.
“Parece romântica essa coisa de um grupo de teatro enfrentando o Silvio Santos, mas isso nos colocou sem patrocínio, que só tínhamos por causa do Gilberto Gil”, afirma, mencionando a gestão do músico do Ministério da Cultura durante o primeiro mandato de Lula.
Ele relaciona a perda do apoio da Petrobras ao impeachment de Dilma Rousseff, que aconteceu no mesmo ano. “Foi ela cair porque também a gente botou muito a cara contra o golpe e a gente caiu.”
Drummond diz que Gardenberg e Matalon, a atriz da peça, foram as duas pessoas que o levantaram após a morte de Zé Celso, episódio que considera o maior baque da sua vida. Mesmo em meio às dificuldades, ele mantém firme sua convicção na vida dedicada ao palco e não divide sua atenção com outros trabalhos.
“As pessoas vão para a televisão, elas ficam ricas e famosas, com a pele bonita, os dentes brancos, e a gente não é assim”, ele afirma. “Minha pele é uma merda de ficar debaixo de lâmpada a vida inteira, minha casa pegou fogo e eu tive que fazer vaquinha para poder consertar, esse tipo de coisa. Mas, nisso tudo, eu prefiro teatro.”
SENHORA DOS AFOGADOS
– Quando Até 11 de maio. Ter. a Sex., às 20h. Sáb, às 16h e às 20h. Dom, às 18h.
– Onde Sesc Pompeia – r. Clélia, 93, São Paulo
– Preço R$ 70,00 (inteira)
– Classificação 18 anos
– Autoria Nelson Rodrigues
– Elenco Marcelo Drummond, Regina Braga, Leona Cavalli e Giulia Gam
– Direção Monique Gardenberg
– Link: https://www.sescsp.org.br/programacao/senhora-dos-afogados/