BOGOTÁ, COLÔMBIA (FOLHAPRESS) – Ao olhar para os pesquisadores mais citados no mundo, você certamente encontrará representantes de países com fortes políticas de investimentos em ciência, como Estados Unidos, China, Reino Unido e Alemanha. Mas, olhando com mais cuidado, você também pode ver uma interessante história de sucesso brasileira: o Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da USP.
As citações de estudos –e, por associação, dos cientistas que os realizaram– é uma das formas utilizadas para mensurar o desempenho de pesquisa.
A constante no Brasil é a seguinte: resultados modestos de produção científica, em queda nos últimos anos, e um percentual de estudos altamente citados abaixo da média mundial, segundo dados da Clarivate, a mesma responsável pelo ranking de cientistas mais citados no mundo.
A realidade dentro do Nupens, porém, é outra. O núcleo marca presença, já há algum tempo, no ranking de citações, contando com 5 dos 14 brasileiros listados –de acordo com a publicação mais recente, de 2024. Ao mesmo tempo, não há concentração dos outros cientistas em outros centros de pesquisa.
Explicar o sucesso costuma não ser uma tarefa fácil, mas, nesse caso, um trabalho que traz grandes inovações em uma área do conhecimento pode ajudar a esclarecer o destaque. O Nupens foi o responsável por trazer ao mundo o conceito dos ultraprocessados, produtos que estão ligados a problemas crônicos de saúde, como obesidade, para citar apenas um.
Mas, curiosamente, as sementes do Nupens, antes mesmo de o núcleo existir de fato, estão nas pesquisas sobre desnutrição infantil feitas na Faculdade de Saúde Pública, a partir da década de 1970, por Carlos Monteiro, um dos criadores do núcleo –hoje coordenador emérito–, e pela primeira vice-coordenadora Maria Helena Benício.
A fundação do Nupens, de fato, ocorre em 1990, com sete pessoas ao todo, mas com atividade de fato mais intensa de Monteiro e de Benício. Hoje, são mais de 40 pesquisadores.
Continuando a trabalhar com desnutrição, porém, os pesquisadores perceberam algo interessante. O Brasil estava tendo sucesso em combater problemas de desnutrição e mortalidade infantil. Contudo, o mesmo não podia ser dito sobre doenças crônicas, que aumentavam.
“A gente se deu conta que a doença crônica está muito relacionada a como os alimentos são produzidos, comercializados, propagandeados, ou seja, se não entender o sistema alimentar, não entendo por que a obesidade está aumentando”, afirma Monteiro.
O conceito dos ultraprocessados é publicado em 2009, apontando para o poder exercido sobre grandes corporações no sistema alimentar. Os pesquisadores propõem a hipótese de que o consumo de ultraprocessados estaria, então, relacionado ao aumento da obesidade no país e provavelmente no restante do mundo.
“Em 2015, publicamos o primeiro trabalho relacionando o ultraprocessado com obesidade, dois artigos, na verdade. E a partir daí você tem uma quantidade enorme de pesquisas testando e confirmando essa hipótese, inclusive estudos experimentais, de intervenção, ensaios clínicos”, diz Monteiro.
Em meio a tudo isso, em 2014, é publicado o “Guia Alimentar para a População Brasileira”, com participação direta do Nupens.
À época, a então pesquisadora do núcleo Patrícia Jaime atuava como coordenadora da coordenação geral de alimentação e nutrição do Ministério da Saúde, e é ela e Monteiro que coordenam o guia. Isso dá ainda mais respaldo e peso para a classificação Nova, criada pelo Nupens e que põe no mundo o conceito de ultraprocessados, e para o próprio núcleo em si.
“Desde o nascimento do núcleo, ele apoia o Ministério da Saúde no desenvolvimento de um conjunto de iniciativas e de programas no campo da vigilância em saúde. Ele também passa a apoiar outros atores das políticas públicas, a Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil e nas Américas”, afirma Patrícia, atual coordenadora do Nupens.
Aberto para questionamentos e para samba
O fato de ser um núcleo dentro da USP parece ser um dos pontos com peso positivo para o excepcional desempenho de pesquisa. Segundo Monteiro, a classificação como “núcleo” permite agregar pesquisadores de diferentes áreas, inclusive de diversos departamentos e faculdades, e atrair novos membros de acordo com o que está em desenvolvimento.
Existe um pouco mais de autonomia dentro dos núcleos para movimentações. Isso resulta numa população flutuante nos núcleos e em mais possibilidades de renovação, segundo Jaime e Monteiro. E, ao mesmo tempo em que isso pode ser benéfico, é um desafio.
Segundo Renata Levy, pesquisadora do Nupens, as novas pessoas escolhidas para integrar o núcleo costumam ser questionadoras. “Não tem nada melhor num grupo de pesquisa do que ter pessoas que questionam, que põem à prova qualquer passo que a gente dê”, diz, reforçando que, além disso, o núcleo desempenha um papel de formação, desde a iniciação científica.
A abertura para questionamentos, sem preocupações hierárquicas é outro ponto que membros do Nupens apontam como importante para o sucesso do grupo.
“Tem uma ideia de que a academia tem essa coisa super hierárquica e super assediadora. E é verdade. Aquela coisa do professor titular, inalcançável, que tem a última palavra, não é questionado”, diz Maria Laura Louzada, vice-coordenadora do Nupens.
No núcleo, porém, essa não é a realidade, diz Louzada, reafirmando, porém, o respeito à história de Monteiro, Jaime e Levy. “Não tem essa hierarquia, a gente discute de igual para igual. Temos toda a liberdade de botar o Carlos [Monteiro] contra a parede”, afirma a vice-coordenadora.
Até mesmo o fato da ampla presença do grupo na lista de pesquisadores amplamente citados já foi motivo para discussões internas.
Louzada comenta que questionou as métricas usadas pela academia, apesar de considerar o número de citações –ou seja, o potencial de influenciar– um pouco melhor do que só o volume de publicações. “Se comparar a gente com outros, publicamos ‘pouco'”, diz Louzada, que aponta que o Nupens procura não incentivar o produtivismo científico ou modos “workaholic” de operar. “A identidade do trabalho que temos é a qualidade, não a quantidade.”
Em vez do incentivo ao produtivismo, há um empurrão dentro do grupo para aproveitar a vida cultural fora do trabalho. Inclusive, uma forma de comemoração e encontro constantes dos membros é no samba.
Financiamento e futuro
Outro ponto lógico, mas que não pode ser posto de lado, é o financiamento constante e independente de pesquisa.
Entre pesquisadores do núcleo ouvidos pela reportagem, é constante a citação ao aporte público de recursos. Monteiro, por exemplo, menciona financiamentos da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) já em 1976.
A Fapesp especificamente, por sinal, foi citada em todas as entrevistas para as reportagens sobre o Nupens. Além dela, Capes e CNPq, outras importantes fontes de fomento, apareceram entre as menções.
Os líderes do núcleo também são taxativos ao apontar que, para evitar quaisquer conflitos de interesse, não aceitam financiamentos da indústria alimentícia. “Conseguimos fazer o trabalho com o financiamento público”, afirma Louzada, acrescentando que também é aceito dinheiro de ONGs, por exemplo.
Há ainda outros pontos mencionados que talvez expliquem o sucesso do grupo. Um deles é a tentativa de responder a perguntas que são universais. Outro mencionado nas entrevistas: a mente de Monteiro.
“Não queremos o momento pós-Carlos”, afirma Levy, que destaca a capacidade de Monteiro de ouvir os outros. “Fingimos que ele é imortal.”