SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A morte do papa Francisco é baque simbólico para a esquerda, que tinha o líder religioso e chefe de Estado como trunfo para movimentar agendas no universo político nacional e conter o avanço da direita radical, afirmam especialistas ouvidos pela Folha.
Eles falam sobre a proximidade de Francisco com a esquerda brasileira, sobretudo com o presidente Lula (PT), e sobre a oposição do pontífice ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que durante o seu mandato não chegou a visitá-lo. Lula, por sua vez, recebeu carta do papa no período em que esteve na prisão em Curitiba e se encontrou com ele duas vezes durante o terceiro mandato.
Francisco morreu na segunda-feira (21), aos 88 anos, devido a um AVC seguido de insuficiência cardíaca. Ficou conhecido pelo foco nos mais pobres e marginalizados, proteção ao meio ambiente e posicionamento público pelo fim de conflitos como o de Gaza. O funeral do pontífice ocorreu neste sábado (26), com a presença de Lula. Agora, um novo papa será escolhido por uma assembleia de cardeais.
Para os especialistas ouvidos pela Folha, Francisco tinha uma agenda de inclusão social que freava o fundamentalismo dentro da própria Igreja Católica, em contexto marcado pelo crescente conservadorismo na sociedade brasileira também pela ascensão dos evangélicos.
Segundo Luis Gustavo Teixeira, doutor em ciência política e professor da Unipampa (Universidade Federal do Pampa), a morte do papa tem, na política nacional, um impacto simbólico considerável que passa por duas perspectivas.
A primeira delas é a perda, na esquerda, de um importante ator internacional utilizado para mobilizar temas políticos. O trunfo, afirma Teixeira, era especialmente valoroso porque a “política no Brasil usa a religião como um argumento de autoridade”. Neste sentido, pontos de vista religiosos com frequência são utilizados para dar embasamento a ações políticas tanto na esquerda quanto na direita.
Outro aspecto era a existência de uma contraposição no cargo de maior autoridade da Igreja Católica a segmentos radicais da própria instituição, o que, para Teixeira, ajudou a blindar o catolicismo de um monopólio conservador que pode alimentar regimes menos democráticos em diferentes países.
De acordo com André Ricardo de Souza, coordenador do Nerep (Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política) e professor da UFScar (Universidade Federal de São Carlos), o papa foi “efetivamente uma influência expressiva no Brasil em termos políticos nos últimos anos”, principalmente por causa da relação dele com Lula.
Souza aponta ter havido uma “vinculação bastante grande na esquerda no Brasil a Francisco, grande como nunca antes”. Cenário que, aponta ele, inevitavelmente também gerou críticas ao pontífice.
Por causa disso, o especialista entende que a esquerda pode perder um apoio político importante de enfrentamento na contenção de causas consideradas progressistas, a depender do perfil do novo papa.
Do ponto de vista eleitoral, porém, ele vê a importância do papa relativizada em um contexto de avanço de evangélicos e em razão do conservadorismo do próprio clero.
O especialista fala sobre uma Igreja Católica que, com o papado de Francisco, tinha “cabeça progressista e corpo conservador”, com poucos clérigos progressistas isolados e perseguidos.
Robson Sávio Reis Souza, professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas e doutor em ciências sociais, afirma que o papa foi um chefe de Estado com uma noção clara de que “uma das formas mais nobres de se tornar uma sociedade mais justa e igualitária é através da política institucional”.
Ele entende que não só a esquerda, mas também grupos da direita democrática perdem com a morte de Francisco em um contexto de ascensão da extrema direita globalmente.
Reis Souza afirma que o papa centrou sua atuação em três pilares: justiça social, cuidado com o meio ambiente e atenção à ética religiosa em sobreposição ao moralismo. “Três aspectos que incidem muito no campo da política, porque hoje há um certo recrudescimento de setores políticos que pregam um modelo de religião impositiva, moralista e exclusivista”, diz.
Ele ressalta, entretanto, não achar adequado o rótulo de esquerda para classificar o pontífice. “Francisco não foi um papa de esquerda. O que acho é que ele teve uma ética, sob o ponto de vista de pensar o mundo, a sociedade e os governos, muito clara. Governos inclusive de uma direita democrática, liberal, de respeito aos direitos humanos, tiveram afinidade com o papa”, diz.