SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O disco “OK OK OK”, de Gilberto Gil, abre com uma faixa homônima, em que ele canta “já sei que querem minha opinião, um papo reto sobre o que eu pensei, como interpreto a tal, a vil situação”. O trecho espelha uma situação comum nos shows do artista o anseio do público por um posicionamento político.
Em 1977, Gil vai ao colégio paulistano Equipe se apresentar a uma plateia com mil alunos, espremidos em um pátio. Não era o primeiro show do músico ali, mas, com a intensificação do movimento estudantil e da repressão militar, havia uma expectativa, por parte dos alunos, de que ele se manifestasse contra a ditadura.
O músico baiano voltava do 2º Festac, Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, na Nigéria, onde tinha passado um mês com artistas de toda a África e da diáspora. “Ele estava animado para cantar Não Chore Mais pela primeira vez”, conta o apresentador Serginho Groisman, ex-equipano e responsável pela organização dos shows.
O Equipe era conhecido como um reduto de arte e música durante a ditadura, recebendo artistas como Clementina de Jesus, Cartola, Adoniran Barbosa, Tom Zé e muitos outros. Groisman conta que a divulgação era feita por meio do “boca a boca” e por lambe-lambes que ele mesmo colava.
Naquele domingo, Gil tocou com voz e violão um repertório novo, músicas dançantes que fariam parte do disco “Refavela”, lançado naquele ano. Enquanto isso, o público pedia, aos gritos, a canção “Domingo no Parque”, de 1967, início da tropicália.
A certa altura do show, um vizinho chamou a polícia, recebida às vaias dos alunos. “Gil defendeu os oficiais, disse que eles estavam apenas fazendo seu trabalho”, lembra o apresentador.
A situação agitou o público, e um aluno exigiu posicionamento político do músico. “Gil respondeu que na África todo mundo guerreava, mas também cantava e dançava, e que era isso o que a gente tinha que fazer cantar e dançar”, lembra.
Parte dos estudantes na plateia tinha participado de confrontos com a polícia em manifestações e esperava assistir a um Gil politizado. Para o historiador Thiago Vieira, professor no IFMT, o Instituto Federal de Mato Grosso, e pesquisador da canção popular brasileira, esse é um traço comum de alguns setores da esquerda.
“Era uma juventude que buscava se organizar da mesma forma que sempre se organizou, indo à rua e manifestando. E cobravam o mesmo dos artistas. Só que a repressão não permitia isso, e Gil estava criando outra possibilidade de luta”, afirma.
A viagem à África pôs Gil em contato com referências musicais diversas, incorporadas posteriormente em sua obra. As faixas de “Refavela” mostram um Gil voltado a suas próprias origens diaspóricas, propondo uma aproximação entre a música brasileira e a africana.
“A MPB sempre foi considerada um filtro do bom gosto, mas ela obedecia a certos critérios, padrões que a tornavam compreensível ao público. Quando Gil mostra aquele som totalmente diferente, começa a soar meio maldito”, diz Vieira. “E seu público, num momento de corpo a corpo político, só queria ser correspondido pelo artista.”
Apesar do conflito, alunos do Equipe concordam que foi um show memorável. “Durou três horas, todo mundo pendurado só no violão e na voz dele. Gil conseguiu abraçar a juventude sem precisar ser panfletário, e por isso ele é genial”, diz Beno Suckeveris, que estudou no colégio nos anos 1970 e era um dos alunos na plateia. “Eu lembro que quando ele lançou ‘Refavela’. A gente cantava os avisos do mural da escola nos ritmos do disco”, lembra.
“Refavela”, que completa 48 anos em 2025, é o segundo álbum na trilogia dos “Re”, junto a “Refazenda”, de 1975, e “Realce”, de 1979.
Os três discos são contemplados na última turnê de Gilberto Gil, “Tempo Rei”. O músico faz sua última apresentação em São Paulo neste sábado (26), no Allianz Parque. A turnê ainda passará por Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba, Belém, Porto Alegre, Fortaleza e Recife, terminando em novembro deste ano.