Muito antes do sol tocar os prédios da Zona Norte carioca, uma tradição centenária já movimenta as ruas do bairro de Quintino. São 5 da manhã e um grupo de devotos se reúne para celebrar São Jorge com fogos de artifício e orações — abrindo oficialmente o feriado estadual em homenagem ao santo guerreiro, figura de fé e resistência no imaginário brasileiro.
Conhecido por ser patrono de soldados, cavaleiros e arqueiros na tradição católica, Jorge é visto pelos fiéis como um símbolo de coragem contra os males do mundo. Mais do que uma figura mítica, ele representa a força espiritual nas batalhas cotidianas, como afirma o site oficial do Vaticano, que o descreve como instrumento da vitória divina sobre o mal.
Apesar da forte presença no catolicismo, São Jorge é reverenciado em diferentes tradições. Igrejas como a Anglicana e a Ortodoxa o reconhecem como santo, e nas religiões afro-brasileiras, como umbanda e candomblé, ele é respeitado — mesmo que não seja Ogum, como muitos ainda acreditam.
Da Capadócia ao imaginário popular
A história de Jorge tem raízes na Capadócia, atual Turquia, por volta do século III. Filho de cristãos, serviu ao exército do imperador romano Diocleciano, mas foi martirizado ao se recusar a renegar sua fé durante uma onda de perseguição religiosa. Ele teria sido decapitado em 303, gesto que selou sua fama de mártir e herói espiritual.
Embora os registros históricos sejam escassos, uma inscrição de 368 encontrada na Ásia Menor menciona uma igreja dedicada a Jorge e seus companheiros mártires — um dos poucos indícios materiais de sua existência.
Durante as Cruzadas, sua imagem ganhou nova força: lendas surgiram retratando-o como o matador de um dragão que aterrorizava uma cidade. Essa narrativa o tornou um símbolo da luta entre o bem e o mal, e foi amplamente explorada como alegoria da guerra espiritual e da resistência cristã contra o “inimigo”.
Santo do povo, herói do cotidiano
Para o historiador e escritor Luiz Antonio Simas, São Jorge não é um santo distante ou reservado a ocasiões solenes. Pelo contrário: “É um santo do dia a dia, que resolve problemas da vida real”, diz ele. “Como Santo Expedito, é daqueles que estão presentes nas urgências e nas dores de quem vive à margem.”
Sua popularidade é explicada também pela simbologia do guerreiro: alguém que enfrenta e vence obstáculos — sejam eles visíveis ou invisíveis. Essa imagem poderosa atravessa fronteiras religiosas e culturais.
Sincretismo e resistência
Com a colonização e a imposição da fé cristã sobre os povos africanos escravizados, muitos orixás passaram a ser associados a santos católicos. No caso de São Jorge, houve uma identificação com Ogum, orixá da guerra e da tecnologia. No entanto, como explica a socióloga e mãe de santo Flávia Pinto, essa associação não significa equivalência.
“São Jorge não é Ogum. Ele pode ser visto como protegido de Ogum, mas são figuras diferentes em origem e tempo”, explica. “Ogum tem raízes milenares na Nigéria, enquanto Jorge viveu há dois mil anos.”
Segundo Flávia, o sincretismo foi também uma forma de resistência dos povos africanos, que, diante da perseguição religiosa, encontraram maneiras de manter viva sua fé ancestral. Mas ela alerta que esse processo não pode ser romantizado: “Foi fruto de violência, de apagamento cultural. Mas, mesmo assim, os povos afrodescendentes transformaram imposições em espaços de liberdade espiritual.”
Uma devoção que transcende religiões
Curiosamente, São Jorge também é respeitado por alguns muçulmanos, que o associam a uma figura presente no Alcorão, chamada Al-Khidr — um personagem sábio e espiritual. Essa convergência de significados mostra como a figura de Jorge extrapola as fronteiras do cristianismo e toca diversas tradições.
Com raízes em terras distantes, histórias cruzadas por lendas e um símbolo de coragem que ultrapassa os séculos, São Jorge continua sendo, para milhões, o companheiro invisível nas batalhas do cotidiano.