SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com forte sotaque carioca, Elis Regina locuta regras de etiqueta, lê as previsões do horóscopo, canta, conta piadas, responde a cartas de ouvintes, recita “Soneto de Fidelidade”, de Vinicius de Moraes, e homenageia o compositor Ary Barroso.
Em outro momento, conduz um bate-papo descontraído com Claudette Soares -“uma das maiores cantoras que o Brasil tem”-, Nana Caymmi -“a mais bagunceira”- e Marília Medalha -“que está começando agora e já é fogo na jaca”. As quatro se atropelam, às risadas, ao comentar os festivais de música, seus compositores, as vaias, o papel dos costureiros de então e as minissaias. “Amor, eu só tenho um medo: de as saias voltarem a ser compridas”, diz Soares.
Tudo isso e outras coisas mais estão em um programa de rádio inédito, gravado no mês de outubro de 1967, que nunca viu a luz do dia por um desentendimento nos bastidores. Mas para se compreender o que é esse piloto da atração, batizada de “O Canto de Elis”, há de se conhecer quem revelou à Folha de S.Paulo esse tesouro de quase uma hora de duração.
Carlos Leite Guerra, conhecido no meio publicitário como Pança, de 83 anos, nasceu em 1941, na cidade de Fafe, a cerca de 400 quilômetros de Lisboa. Aos 12, ele se mudou com a família para São Paulo. Mais tarde, deixaria o curso de direito e o emprego num banco para dar vazão a seu espírito criativo -sem deixar de levantar uma grana.
Enveredou para a publicidade, com a música, uma de suas grandes paixões, a tiracolo. Com as várias agências de publicidade e produtoras de áudio em que trabalhou, visitava os departamentos de rádio e televisão das empresas, sempre levando uma peça musical na manga.
A primeira que emplacou foi um jingle de Natal para as Casas Pernambucanas, composta por integrantes do grupo Titulares do Ritmo, sexteto vocal e instrumental, donos com mais dois sócios do estúdio Pauta, onde Guerra trabalhava.
Daí para frente, o jovem pegou gosto pela coisa e passou a produzir jingles, spots e trilhas para rádio, TV e cinema, sempre com o auxílio de músicos tarimbados, entre eles o compositor Theo de Barros e o maestro Chiquinho de Moraes, que trabalhava com Elis Regina.
Por conta da amizade com Chiquinho, Guerra se tornou “chegança” de Elis, frequentando o apartamento da cantora -à época, no Condomínio Agulhas Negras, 125, no centro de São Paulo. “Ia na casa dela, saíamos para comer e conversávamos sobre tudo, enquanto o Chiquinho e o Ronaldo [Bôscoli, produtor e compositor] só falavam sobre música. Com o tempo, fui percebendo que ela era muito carente de atenção e de tudo”, diz Guerra.
“Às vezes, ela me deixava louco também. Uma vez, saindo do hotel Danúbio, quando abrimos a porta do saguão, veio um monte de gente e uma menina com álbuns dela para serem autografados. Ela ficou puta. Eu disse: ‘oh, Elis, pelo amor de Deus!’ Mas a pessoa famosa não tem liberdade, não tem vida, sabe? Ela era uma pessoa de opinião, mas simples. Ela mesma se maquiava. Eu a vi costurando sua própria anágua”, diz o português, autor da letra do primeiro hino da Portuguesa, o “Rubro-Verde”.
“A letra é minha, e a música, do Archimedes Messina , que fez a música de abertura do programa do Silvio Santos e um monte de jingles conhecidos, entre eles o do Café Seleto. Agora, imagine fazer uma letra para um time que nunca havia ganhado nada. Passado um tempo, Roberto Leal fez outro hino, que eu acho até mais adequado que o meu.”
A criatividade de Guerra lhe rendeu uma vaga como assistente de rádio e TV na agência de propaganda Norton, que tinha o departamento sob a chefia de Divo Dacol. Sabendo da proximidade de Guerra com Elis, propôs que produzisse um programa com ela.
“A gente iria gravar, montar os comerciais, copiar e mandar para as emissoras do Brasil. O programa seria de variedades, falando de horóscopo, contando uma historinha, dando um conselho, tocando uma música, entrevistando alguém”, diz Guerra. Daí nasceu esse “canto”, não só musical, mas que remetia a um espaço caseiro e íntimo da artista.
“A Elis foi muito legal, não perguntou o que iria ganhar. Nem eu falei nem ela perguntou. Marcamos um dia, fomos lá na Sonotec [estúdio que existiu na rua Riachuelo, no centro de São Paulo], ela levou o quinteto do Luiz Loy e fizemos ao vivo. Ela falava, os caras tocavam e gravamos o que saiu no estúdio”, diz o produtor.
O grupo havia participado, em 1966, da gravação ao vivo do segundo LP da série “Dois na Bossa”, com Elis e Jair Rodrigues, e era formado por músicos de excelência -Loy, no piano e arranjos, Papudinho, no trompete, Mazzola, no saxofone, Bandeira, no contrabaixo acústico, e Zinho, na bateria.
No piloto, Elis canta músicas como “Imagem”, de Luiz Eça e Aloysio de Oliveira, “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, e “Pra Machucar Meu Coração”. Há ainda “Três Lágrimas”, de Ary Barroso, na voz de Silvio Caldas. Intercaladas às músicas e aos quadros conduzidos pela cantora, oito inserções comerciais apresentam carros da marca Volkswagen em textos bem-humorados.
A produção ficou a cargo de Guerra, enquanto Dacol cuidou de dirigir e escrever o programa. Mas, pouco antes da gravação, Elis contou que se casaria com Bôscoli e que, como ele estava cuidando de sua carreira, deixaria a supervisão do piloto a cargo dele e de Luís Carlos Miele -com quem formava uma das mais influentes duplas do entretenimento nacional. Guerra concordou, mas diz que os dois não estiveram presentes na noite da gravação.
Após o casamento, em dezembro de 1967, Bôscoli viajou a São Paulo e convidou Guerra para um uísque na extinta boate Blow Up. O recado era que teriam de eliminar a participação de Dacol do projeto, pois tinha muita gente envolvida. Caso contrário, sobraria pouco dinheiro para os outros envolvidos. Guerra não concordou, contou a situação ao chefe e, de pronto, o projeto foi engavetado -nunca mais se tocou no assunto. Dacol, Bôscoli e Miele já morreram.
Com isso, “O Canto de Elis”, que trazia amenidades acompanhadas de música de alta qualidade, foi mais uma boa ideia engavetada, guardada há quase 60 anos no arquivo pessoal de Guerra.
Nesse material também ficaram escondidos comentários das artistas sobre o 3º Festival da Música Popular Brasileira, cuja final ocorreria em outubro de 1967. Medalha defendia “Diana Pastora”, de Fernando Lobo e João Mello, e “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam.
Nas duas músicas, ela contava com o grupo Momento Quatro, formado por Zé Rodrix, Ricardo Villas, Maurício Maestro e David Tygel. “Defendo Ponteio, com o Edu. Eu realmente gostei imensamente da música logo que ouvi. A música de Fernando [Lobo, ‘Diana Pastora’] eu acho bonita também, mas tinha outras mais fortes”, diz ela, sem saber que “Ponteio” seria a vencedora.
Já Elis defendia “O Cantador”, de Dori Caymmi e Nelson Motta. “Eu realmente não esperava muito dela, sou muito sincera. Não esperava porque eu via que o ambiente geral não era muito propício a músicas tranquilas, pacatas, calmas e serenas, mas até que deu uma reviravolta”, diz.
“Fiquei feliz por Nelsinho e por Dori, que conseguiu botar para fora todos os sorrisos que ele armazenou durante seus 23 anos de vida. Ele é o homem que não ri. E agora vamos esperar o dia 21 com metralhadoras, bombas e o diabo, porque a barra tá muito pesada.”