SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Foi na Flip de 11 anos atrás que Marcelo Rubens Paiva ouviu pela primeira vez em público uma gravação da voz de seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva, feita exatamente no dia do golpe de 1964, conclamando a população a resistir aos militares.
Logo depois, foi a primeira vez também que narrou trechos ainda crus de seu “Ainda Estou Aqui”, sobre o calvário que engoliu sua família com o desaparecimento do pai. Fez isso em meio “a um maremoto de emoções”, segundo seu relato, e interrompeu a leitura duas vezes, com rosto molhado e garganta travada de lágrimas.
Naquela mesmíssima edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a atriz Fernanda Montenegro circulava pela cidade pedregosa para prestigiar a participação de sua filha, Fernanda Torres, como autora convidada. O resto é história de cinema.
A lembrança aparece no livro que Paiva lança nesta semana, “O Novo Agora”, que cobre os mais recentes acontecimentos na vida do autor -do momento em 2014 no qual se sentia um artista quase obsoleto, à beira da aposentadoria, até a volta aos holofotes que o encaminhou a um novo ápice.
Durante esta entrevista em sua casa em São Paulo, o escritor de 65 anos brinca que o frio na barriga às vésperas de “O Novo Agora” está parecendo o de um autor prestes a publicar seu segundo livro -ele já tem 17.
Mas faz sentido, porque “Ainda Estou Aqui” deu um salto estrondoso com a estreia de sua adaptação em filme, que renderia o primeiro Oscar do Brasil.
O livro passou a vender 50 vezes mais após a exibição do longa de Walter Salles no Festival de Veneza, segundo o grupo Companhia das Letras, e ultrapassou em janeiro a marca de 100 mil exemplares.
“É uma surpresa, né? Eu estar na Europa sendo traduzido, dando palestra na Sorbonne, sendo chamado para um monte de feira literária, tendo que dizer não a convites”, diz o autor em seu escritório, mostrando ao repórter sua recém-inaugurada agenda do Google, uma obrigação burocrática a que teve que ceder diante de tantos compromissos.
“É surpreendente ver que minha literatura tem alguma substância que está comovendo até fora do Brasil. Meus livros ficaram na lista dos mais vendidos décadas depois de publicados, isso não é praxe no mercado.”
A obra sobre Eunice Paiva virou febre na Itália, por exemplo, e será editada no ano que vem nos Estados Unidos e Reino Unido pela Charco Press. “O Novo Agora”, antes mesmo de sair por aqui, já tem contrato para ter uma edição portuguesa pela Dom Quixote.
“As pessoas gostam do estilo pouco ortodoxo da minha literatura. Esse livro novo também foge da narrativa linear, vai da maternidade ao Baixo Augusta.”
O próprio autor vinha duvidando de sua “literatura de digressões”, mas sempre teve incentivos na hora certa. Se o editor Caio Graco convenceu Paiva de que dentro dele havia “Feliz Ano Velho”, dessa vez o empurrão foi de Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras.
“Eu falei a mesma coisa que disse ao Graco: que interesse tem nisso?”, afirma Paiva. “Na época foi:, quem vai querer ler a história de um garoto que fica paraplégico aos 20 anos? Agora foi: quem vai se interessar por um cara de cadeira de rodas criando dois filhos?”
Isso porque “O Novo Agora” é sobre muita coisa, mas é acima de tudo sobre a experiência da paternidade, prenhe do deslumbramento de quem, já com quase 60 anos, deixa a vida se reinventar pelo olhar astuto de dois meninos que chama, durante o livro inteiro, de Moreno e Loirinho.
“O pai cadeirante os obrigou a um comportamento diferente, assim como um pai morto me obrigou: a crescermos mesmo enquanto somos crianças”, escreve ele, em uma síntese eficiente.
É a primeira autobiografia em que Marcelo deixa a posição de filho -e não é por acaso que contenha o relato da morte de Eunice Paiva- para assumir a de pai.
Entre mil causos e anedotas, um dos prazeres de “O Novo Agora” é procurar essas rimas geracionais. Durante uma manifestação solene em razão dos 60 anos do golpe, o menino mais novo de Marcelo, aos sete anos, escreve com giz no asfalto da rua: “Onde está meu vovô, assinado Moreno”.
São traços de uma vida pessoal inextricável da política, querendo seus membros ou não. O livro é contaminado pelo incômodo de Paiva com comentários odiosos que são dirigidos a ele ao vivo e na internet, não raro com termos violentos sobre sua tetraplegia.
“O Brasil vai demorar para se recuperar desse período em que a violência foi para as ruas e para as redes sociais, em que a polarização atingiu um grau de insanidade, de indecência. Quando você se torna pai, tudo o que quer é um mundo com amor, estabilidade, com a ideia de um futuro progressista.”
O livro sobrevoa obstáculos sérios da última década -o divórcio, a pandemia, a sensação de caça às bruxas com seus projetos sendo cancelados durante o governo Jair Bolsonaro-, mas Paiva termina o arco com otimismo. Afinal, o presente é de pujança, entre os shows de sua banda Lost in Translation e a divulgação de seus livros.
Ainda que tenha assegurado presença na Feira do Livro, em São Paulo, ele teve que recusar convites para retornar à Flip em duas casas da programação paralela. Vale, então, se deter um pouco mais na última visita de Paiva ao festival, lá em 2014.
Numa das vezes em que interrompeu o relato sobre seus pais, tomado pela emoção, Marcelo lia uma cena que se tornaria das mais emblemáticas de “Ainda Estou Aqui”. “Minha mãe deu o tom: a família Rubens Paiva não chora em frente às câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima. A família Rubens Paiva…”
Aí ele se cala. Respira, bebe água, seca os olhos. “Eu fui pai agora. Meu menino tem cinco meses e meio”, diz, finalmente, com a boca tremendo. “Eu estou vendo tudo isso com outros olhos.”
O NOVO AGORA
Preço R$ 79,90 (272 págs.); R$ 39,90 (ebook)
Autoria Marcelo Rubens Paiva
Editora Alfaguara
Lançamento 6 de maio, às 19h, no Sesc Pinheiros, em São Paulo