SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A controversa decisão do governo de Donald Trump de desmantelar a principal agência de ajuda internacional dos Estados Unidos ameaça a continuidade de programas estratégicos construídos ao longo de décadas e o rompimento de relações sensíveis na África. O novo cenário já é explorado por rivais de Washington, que buscam ampliar a influência pelo mundo em um momento de tensões geopolíticas crescentes.
Especialistas alertam que a suspensão da ajuda ainda pode ampliar a instabilidade do continente, já assolado por uma série de golpes de Estado e conflitos armados. Além de cortes a programas destinados aos setores de saúde e educação, Washington deve fechar embaixadas, e relatos sugerem que o presidente Trump quer diminuir as operações militares americanas na África, segundo reportagem do site Politico.
“É uma mudança importante que terá consequências estratégicas descomunais, tanto para os EUA quanto para seus parceiros de longa data em toda a África. O governo Trump interrompeu repentinamente mais de seis décadas de engajamento e construção cuidadosa de relacionamentos no continente”, diz Matthew Page, pesquisador associado do programa para a África na Chatham House, centro de estudos britânico sobre relações internacionais.
A mudança terá efeitos políticos e econômicos para Washington. Em fóruns multilaterais, os EUA podem perder apoio. E se por um lado o governo Trump tenta enxugar gastos no exterior, por outro se afasta de uma região que tem seu mercado consumidor em expansão.
Felix Kumah-Abiwu, professor associado da Universidade Estadual de Kent, nos EUA, enfatiza que a África é o continente em que a população jovem mais cresce. “Há uma enorme base de mercado que os EUA podem explorar no futuro”, afirma.
Mas as políticas americanas para a África sob o atual governo mudaram de forma “muito drástica e dramática”, acrescenta ele, também diretor do centro de estudos africanos da instituição. É algo diferente do que ocorreu no primeiro mandato do republicano, no qual os EUA ainda destinaram recursos robustos ao continente, embora a região também não fosse prioridade.
Sob o pretexto de evitar desperdícios e eliminar fraudes, o governo Trump anunciou no mês passado o cancelamento de 83% dos programas da Usaid (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional), que financia atividades de organizações humanitárias de todo o mundo, inclusive brasileiras. Segundo o secretário de Estado americano, Marco Rubio, bilhões de dólares foram gastos “de maneiras que não serviam, e em alguns casos até prejudicavam, os principais interesses nacionais dos EUA”.
Cerca de um quarto do orçamento era dedicado à África. No continente, os efeitos dos cortes são sobretudo humanitários: foram encerrados mais de 5.000 projetos de saúde, incluindo iniciativas contra HIV, malária e desnutrição. Dezenas de países já registram impactos.
Mais do que salvar vidas e ajudar o desenvolvimento local, essas iniciativas são ferramentas importantes do chamado “soft power” americano, segundo Alexandre dos Santos, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ. Trata-se de uma estratégia para que Washington esteja presente de maneira amigável em uma série de países ao redor do mundo, de aliados estratégicos a até mesmo adversários.
“Isso muda a visão de que os EUA estão lá [na África] meramente interessados em exploração econômica”, diz o professor. “Mas parece que os EUA querem abrir mão de todo o soft power que vêm construindo desde a década de 1960.”
Enquanto os EUA se distanciam da África, países como Rússia e China se aproximam. Na República Centro-Africana, a Russia House, uma instituição cultural apoiada pelo Kremlin, publicou fotos em fevereiro de seu diretor fazendo entregas de caixas com medicamentos para tuberculose e HIV.
“Muitos governos estão buscando maneiras de preencher a lacuna criada pela incerteza do financiamento dos EUA”, disse na ocasião Pierre Somse, ministro da saúde do país africano. “Esperamos que o governo russo considere fazer mais.”
A República Centro-Africana fica próxima do Sahel, região ao sul do Saara assolada por uma série de golpes militares nos últimos anos e disputada por Moscou e potências do Ocidente.
E nesse cenário de instabilidade, mercenários russos se fazem cada vez mais presentes. As forças do país no Sahel, apontam pesquisadores, têm ajudado Moscou inclusive a custear parte da Guerra da Ucrânia com a extração de ouro.
Já o Centro Africano de Estudos Estratégicos, do Departamento de Defesa dos EUA, relatou no ano passado que as campanhas de desinformação no continente quadruplicaram desde 2022. O instituto apontou Rússia e China entre seus principais patrocinadores. Somente Moscou teria sido responsável por 80 iniciativas do tipo em 22 países.
No ano passado, os EUA foram responsáveis por 41% da ajuda global, com cerca de US$ 70 bilhões, segundo o jornal The Washington Post. Ainda não se sabe o valor destinado após os cortes anunciados por Trump.
Pequim, por sua vez, destina menos recursos em ajuda humanitária, mas vem aumentando seus gastos estrangeiros nas últimas décadas. De acordo com a Iniciativa de Pesquisa China-África, da Universidade Johns Hopkins, os fluxos anuais de investimento direto chinês para a África saltaram de US$ 75 milhões, em 2003, para US$ 5 bilhões, em 2021.
Já os EUA, que fizeram investimento de US$ 10 bilhões ao continente em 2009, chegaram a retirar capital nos últimos anos.
O país em que a China mais investiu no continente, nesse período, foi a África do Sul, que é seu parceiro no Brics. Os EUA, por sua vez, cortaram todo o financiamento à nação devido ao que chama de “violação massiva” dos direitos das pessoas brancas depois que Pretória aprovou uma lei que prevê desapropriação de terras para diminuir desigualdades.