MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Jorge Mario Bergoglio buscou passar a imagem de transparência ao falar em público sobre seus problemas de saúde, apesar da tradição da máquina do Vaticano de cultivar segredos. Durante sua última internação, o estado do papa foi informado em diversos boletins. Ele teve alta em 23 de março, mas a gravidade do quadro se manteve, e o pontífice morreu nesta segunda-feira (21), aos 88 anos.

Ao longo de sua vida, Francisco falou, quase sempre com bom humor, sobre problemas pulmonares da juventude, dores nos joelhos que o levaram ao uso de bengala e cadeira de rodas e cirurgias no abdômen que o deixaram internado por dias, quando era já um idoso de mais de 80 anos.

De forma inédita, discorreu sobre a própria saúde mental. Bergoglio contou, em entrevista realizada em 2019, que sofria de neurose do tipo ansiosa, mas que com o passar do tempo havia aprendido a identificar o problema e a administrá-lo. “Às nossas neuroses devemos oferecer um chimarrão. Devemos acariciá-las. Acompanham a pessoa pela vida toda”, disse ao médico e jornalista argentino Nelson Castro, autor do livro “La Salud de los Papas” (a saúde dos papas, em espanhol), publicado em 2021.

Segundo o papa, sua ansiedade o levava a querer “fazer tudo e rápido” e, quando reconhecia que estava passando por uma situação que o deixaria assim, agia para frear “a entrada da ansiedade no espírito”, com atividades como escutar Bach. “Seria perigoso se tomasse decisões em um estado ansioso.” O mesmo vale para a tristeza que deriva da impossibilidade de resolver um problema, afirmou: “É importante dominá-la”.

No livro, o argentino contou que, durante a ditadura na Argentina (1976-1983), quando estava à frente da ordem dos jesuítas, se consultou semanalmente, durante seis meses, com uma psiquiatra. “Ela me ajudou a pensar em como administrar os medos daquela época”, disse o papa, sobre ter, como disse, escondido e ajudado a transportar pessoas para fora do país.

Antes de se tornar pontífice, Bergoglio teve o nome ligado a episódios ocorridos no período e apontado como omisso diante da repressão militar, o que ele sempre negou.

“Foi o primeiro papa que falou tão abertamente não só sobre a própria saúde, mas também sobre a saúde mental”, disse Castro à Folha. “Foi a primeira vez que um papa vivo contou sua história. De todos os outros papas, tivemos informações e soubemos de coisas desconhecidas somente depois de suas mortes”, afirmou o jornalista, que teve acesso ao arquivo do Vaticano, com documentos sobre a saúde e as mortes dos papas desde Leão 13 (1810-1903).

Na conversa que teve com Francisco, no Vaticano, Castro ouviu que ele, até 2019, nunca tinha estado deprimido, mas que ficava triste com situações como as circunstâncias que a Argentina precisava atravessar (sem especificar quais) e quando um padre deixava a batina. Também ficava mal quando lia sobre crianças morrendo de fome e idosos abandonados. Mas que nunca havia precisado tomar remédios para dormir. Quando vinha a raiva, ficava calado ou rezava.

Pensava Francisco na morte? “Sim”, respondeu o papa. “Tem medo dela?”, perguntou Castro. “Não”, disse o religioso. “Como imagina que morrerá?”. “Como papa, em atividade ou emérito. Em Roma. Para a Argentina, não volto”, disse à época.

Apesar da aparente franqueza com que Bergoglio falava de sua saúde, nem sempre a Santa Sé seguiu a linha da transparência –não se sabe se por indicação dele ou por iniciativa própria. Desde quando se tornou papa, em 2013, aos 76 anos, foram ao menos duas ocasiões em que a comunicação do Vaticano buscou omitir ou atrasar o conhecimento de suas entradas em hospitais.

A mais gritante delas aconteceu em 2019, quando o pontífice foi submetido a uma operação nos olhos, em Roma, para tratar de catarata. A intervenção foi realizada em segredo, e a informação só foi confirmada meses depois pelo Vaticano.

Em 2023, outro episódio. Dias antes da celebração da Páscoa, o papa foi internado no hospital Agostino Gemelli, em Roma. Enquanto a comunicação oficial da Santa Sé falava em “controle programado”, dando a entender que não se tratava de algo urgente, o papa passava por atendimento devido a um mal-estar que, mais tarde, foi confirmado como sintoma de uma bronquite.

“Dentro do Vaticano, causava estupor a decisão do papa de falar tão abertamente da própria saúde. Cardeais e bispos se perguntavam por que o papa fazia isso tão abertamente”, afirma Castro.

A resposta, segundo ele, passa pela compreensão que Francisco foi tendo de que a saúde de uma figura no poder, como é o papa, gera especulação mundialmente, além do ar de conclave que se instala nos bastidores toda vez que um pontífice fica doente. Demonstrar que está consciente e no controle pode ser mais eficaz do que deixar boatos correrem soltos.

A tentativa de Bergoglio de demonstrar transparência se encaixou também no processo de evolução do próprio Vaticano. A deterioração física pela qual passou João Paulo 2º (1920-2005), com o agravamento público de seu estado de saúde desde o início dos anos 1990 até a sua morte, tornou quase impossível manter a prática de segredos que vigorava na Santa Sé em torno dos prontuários médicos.

Quando Karol Wojtyla assumiu, em 1978, ele foi o terceiro pontífice naquele mesmo ano, um momento delicado para o Vaticano. Seus dois sucessores tinham passado por doenças e momentos finais obscuros. Em 1967, Paulo 6º foi operado dentro do Vaticano sem que fosse nomeada a causa –um tumor benigno na próstata. A morte de João Paulo 1º, ocorrida apenas 33 dias depois de assumir, é envolta em interrogações.

Com Wojtyla, veio a mudança. Papa por 26 anos, o polonês foi o primeiro pontífice a ser tratado fora do Vaticano, quando sofreu o atentado a tiros na praça São Pedro, em 1981. Depois disso, seguiu-se uma dezena de internações, para, entre outros motivos, retirar um tumor, tratar quedas e por complicações da doença de Parkinson. A entrada do hospital Gemelli, onde os papas até hoje são internados em uma ala especial, mantém uma estátua em homenagem a João Paulo 2º.