FOLHAPRESS – Em trajes masculinos, assumindo a identidade de Fidelio, Leonore consegue trabalhar na casa de detenção onde Florestan, seu marido —um preso político perseguido— está prestes a ser assassinado por Pizarro, o governador da prisão. No momento culminante, ao revelar-se mulher, ela enfrenta o torturador: “Mate primeiro a esposa dele!”.

“Fidelio”, a única ópera escrita por Beethoven, está em cartaz no Theatro São Pedro com direção musical de Cláudio Cruz e direção cênica de William Pereira. A descrição do momento da revelação de Leonore salta para fora das mais de 900 páginas do livro “Beethoven: Angústia e Triunfo”, de Jan Swafford, talvez a biografia mais completa sobre o mestre alemão.

Nascido no mesmo ano do filósofo Hegel, Beethoven foi um intransigente defensor da liberdade e da fraternidade humanas no espírito da “Aufklärung”, versão alemã dos ideais iluministas, que prescrevia uma atuação de cima para baixo, por decretos de “príncipes melhores”.

Apesar de fluente em italiano, o idioma internacional das óperas, Beethoven optou, em “Fidelio”, pelo canto em alemão. Na versão em cartaz, os diálogos falados são traduzidos para o português, o que ajuda na fluência dramática e não traz nenhuma perda, já que não são recitativos entoados —há apenas um pequeno estranhamento por conta dos câmbios de idioma pelos cantores.

William Pereira gosta de criar enredos paralelos para as histórias das óperas que dirige. Situações do cotidiano recente e filmes de Hollywood muitas vezes são agregados ao texto original, frequentemente criados com projeções de vídeo transmitidas durante a abertura orquestral, o que rompe com o protagonismo propriamente musical da seção.

Nesta montagem, entretanto, isso não se tornou invasivo. Pereira cria um filme em preto e branco que mostra a transformação de Leonore em Fidelio num ambiente que sugere que ela e Florestan trabalham no jornalismo político investigativo, em um espaço repleto de computadores, fotos, blocos de notas, celulares e aqueles cartazes nos quais a inteligência dos filmes policiais fixa as informações e imagens sobre vítimas e suspeitos.

Se algo se perde é apenas o puro engendrar da história, seu ritmo próprio, mais lento, de se mostrar à nossa percepção.

Quando a cena abre, a solução é simples e eficaz: vemos uma prisão que pode estar em algum lugar do nosso tempo, perto ou longe de nós. A experiente Eiko Senda encarna Leonore-Fidelio com seriedade dramática.

Sua precisão afetiva no primeiro ato deixa claro que, na ária —momento sempre interior, introspectivo— o sentimento é o da mulher, o que contrasta com a personagem masculina assumida até então.

Traços de comédia emanam do casal formado por Mar Oliveira (como o atormentado Jaquino) e Lina Mendes (ótima no papel de Marzelline), sobretudo a partir do jogo explícito, na história, dela se apaixonar por Fidelio sem saber se tratar de uma mulher disfarçada.

Lício Bruno faz um convincente Pizarro e Eric Herrero, tenor de agudos cristalinos, aparece bem como Florestan. Ao final, Andrey Mira surge como um altivo D. Fernando, o ministro interventor do rei.

Mas há em “Fidelio” uma personagem que acaba por amarrar os dois atos, regendo, cênica, narrativa e musicalmente o drama cantado: trata-se de Rocco, o chefe dos carcereiros. No papel do velho guarda, o baixo Gustavo Lassen mostrou inegáveis qualidades como cantor e ator. Voz poderosa e homogênea, belo fraseado, cores exatas para cada tom afetivo do texto e primorosa adequação estilística.

Muitas vezes vezes a crítica ressalta a “mão um tanto pesada” de Beethoven para a arte lírica. De fato, a teatralidade de “Fidelio” é um pouco esquemática, e é uma pena que ele não tenha exercitado mais o gênero.

É impossível, porém, não perceber momentos musicais luminosos, seu gosto pela técnica musical da “imitação”, como no monumental quarteto em cânone do primeiro ato, além do incrível coro dos prisioneiros e os vários duetos com vozes graves, todos conduzidos com consciência e experiência por Claudio Cruz.

FIDELIO

– Avaliação Muito bom

– Quando 20/4 e 27/4 (dom.) às 17h; 23/4 (qua.) e 25/4 (sex.), às 20h

– Onde Theatro São Pedro – R. Barra Funda, 171, São Paulo

– Preço R$ 41a R$ 124