SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morto nesta segunda-feira (21), aos 88 anos, Jorge Bergoglio foi pioneiro em muitos aspectos. Foi o primeiro papa jesuíta e o primeiro a adotar o nome de Francisco. Também foi o primeiro papa em 1.200 anos a ter nascido fora da Europa –e o primeiro, na história, da América do Sul.
Para especialistas, essa última característica é definidora para entender a diplomacia que ele exerceu em seus quase 12 anos à frente da Igreja Católica, marcada por uma visão de mundo que parte das periferias, e não dos centros tradicionais de poder.
Anna Carletti, autora de “O Internacionalismo Vaticano e a Nova Ordem Mundial” e professora de relações internacionais da Unipampa (Universidade Federal do Pampa), aponta que o simples fato de Francisco não ter se alinhado automaticamente a Washington já marcou uma diferença em relação aos antecessores.
“Ele não possui a dívida moral que os pontífices europeus assimilaram em relação aos Estados Unidos como consequência dos horrores das duas guerras mundiais”, afirma Carletti. Pelo contrário, prossegue a pesquisadora, o papa viveu na pele a ditadura argentina –que, como muitos dos regimes autoritários que floresceram na América Latina entre os anos 1960 e 1990, teve influência direta da política de segurança exercida pelos EUA na Guerra Fria.
Esse teria sido um dos fatores que, para a especialista, fizeram o líder almejar um mundo mais multipolar e menos desigual. Carletti afirma que essa ambição pôde ser observada em dois aspectos do pontificado de Francisco. O primeiro deles é a indicação de cardeais. Francisco nomeou 110 religiosos de 79 países, 26 dos quais nunca tinham sido representados antes.
O outro âmbito em que essa postura teria ficado clara, na visão dela, são as viagens internacionais que ele realizou ao longo de seu período à frente da Igreja Católica. Do total de 67 países, ao menos sete nunca haviam sido visitados por um papa antes: Mianmar, Emirados Árabes Unidos, Macedônia do Norte, Iraque, Bahrein, Sudão do Sul e Mongólia.
Além disso, aponta Carletti, a maioria das nações que ele visitou estão ou na periferia da Europa ou no chamado Sul Global, termo hoje usado para fazer referência a Estados emergentes.
“Ele enxergava um mundo que já não era mais liderado pelos EUA”, afirma Mariano Barbato, professor associado de ciência política da Universidade de Passau, na Alemanha.
O acadêmico descreve o papa como “um homem político, que pensava em termos políticos”. “Para ele, era muito importante ter a maior quantidade possível de relações com todo tipo de ator.”
Nesse sentido, continua Barbato, a abertura ao diálogo interreligioso talvez tenha representado em um só tempo o maior êxito e o maior fracasso do papa no campo diplomático.
Alguns dos esforços de Francisco voltados para esse objetivo fizeram história: ele foi, por exemplo, o primeiro pontífice a se encontrar com o líder da Igreja Ortodoxa Russa desde o cisma que dividiu em dois grupos, em 1054. Também rompeu barreiras ao visitar a Península Arábica.
Ao mesmo tempo, esse anseio por alargar as fronteiras do catolicismo se voltou contra ele em vários ocasiões. Um exemplo é o que aconteceu na China. O regime prevê liberdade religiosa mas, para se proteger de eventuais ameaças ao seu poder, tem como política erradicar influências estrangeiras em favor da autoridade do Partido Comunista.
Apesar disso, Francisco até conseguiu avançar, e firmou em 2018 um tratado que fazia com que todas as indicações de bispos e padres do local passassem por ele.
Foi o primeiro passo para que Pequim reconhecesse o pontífice como líder da Igreja Católica. Antes, seus postos eclesiásticos contavam apenas com o endosso da chamada Associação Patriótica Católica Chinesa, que, em última instância, respondia ao Partido Comunista.
Entre 2022 e 2023, no entanto, ao menos dois bispos foram nomeados sem o aval do papa, levando o Vaticano a acusar o regime de ter rompido o acordo. As relações aparentemente se normalizaram em 2024, quando o pontífice nomeou três sacerdotes chineses no espaço de uma semana.
Mas, diz Barbato, “Francisco fez de tudo para agradar a China”, enquanto ela parece ter feito pouco ou nada em troca.
O professor cita ainda a aproximação do papa com o patriarca Cirilo, dirigente da Igreja de Moscou, e com a Rússia em geral. Na época, afirma o estudioso, o líder católico sentia que o Ocidente tinha em certa medida abandonado os cristãos do Oriente Médio depois da Primavera Árabe, e enxergou em Vladimir Putin e sua amizade com o ditador da Síria, Bashar Al-Assad, uma via de comunicação com aqueles fiéis.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2022, porém, o pontífice “teve uma grande dificuldade para se distanciar do presidente Putin”, na opinião de Barbato, usando mais de um de seus discursos semanais na praça São Pedro para deixar claro que ele não estava do lado do agressor.
O mesmo desconforto se abateu sobre a relação de Francisco com Cirilo, que não só apoiou o ataque ao país vizinho como descreveu-o como uma batalha entre o bem e o mal na qual caberia a Moscou, segundo ele dona do território ucraniano por direito, proteger seu povo de um Ocidente que tenta pervertê-lo com causas como o feminismo e os direitos LGBTQIA+.
O papa tentou diminuir as tensões, pedindo em determinado momento que Cirilo abandonasse a linguagem da política e priorizasse a de Deus e afirmando que o russo não deveria se tornar “coroinha de Putin”. A Igreja Ortodoxa respondeu em nota, descrevendo a postura como lamentável. Desde então, todas as tentativas articuladas pelo papa para que eles voltassem a se reunir fracassaram.