BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – De seus 88 anos de vida, o papa Francisco passou 76 na Argentina. Em seus quase 12 anos de pontificado, porém, não mais pisou em sua terra. A relação, por muito tempo de paixão, foi se tornando agridoce à medida que ele escalou postos da hierarquia eclesiástica, primeiro como arcebispo (1998), depois cardeal (2001), até o Vaticano, em 2013.

Os mais fiéis ou admiradores podem fazer uma rota turística de Jorge Bergoglio por Buenos Aires. Percorra o bairro de Flores, onde ele viveu na infância e na adolescência; visite o Colégio del Salvador, na extensa avenida Callao, onde ensinou literatura nos anos 1960, e a Paróquia Nossa Senhora de Caacupé, na Villa (favela) 21-24, na qual lavou e beijou pés de fiéis com frequência.

A Argentina ainda é um país de maioria católica (63%), segundo pesquisa do Latinobarometro de 2024. A cifra está distante dos números das nações mais católicas da região, Venezuela e Paraguai (72%), mas acima da média da América Latina (54%) e do Brasil (46%).

O primeiro pontífice latino-americano da história era um apaixonado por tango, gênero outrora malquisto pela Igreja Católica, mas achava mais fácil dançar milonga; adorava futebol e torcia para o San Lorenzo, clube que prometeu batizar seu novo estádio de “Papa Francisco”.

A figura do religioso conhecido como um “cura villero” (um padre das favelas), por sua defesa de que os líderes religiosos estivessem nesses espaços, passou a ser politizada quando aumentou o esgarçamento de sua relação com o casal Kirchner: Néstor, presidente de 2003 a 2007; e Cristina, de 2007 a 2015. Néstor chegou a chamar Bergoglio de “o líder espiritual da oposição”.

Dali nasceu uma polarização em torno do argentino que nunca cessou, ao menos não até sua morte. Na visão de alguns, o papa se tornou um antikirchnerista. Para outros, ironicamente, era um peronista. Para ele próprio, porém, como reiterou em diferentes ocasiões, sua vocação para a defesa da justiça social não o colocava em nenhuma caixa.

O mal-estar contribuiu para que em todos seus anos no papado Jorge Bergoglio até ensaiasse, mas não concretizasse uma visita oficial à Argentina, mesmo tendo ido a vários países da região: Brasil (2013), Equador (2015), Bolívia (2015), Paraguai (2015), Chile (2018) e Peru (2018).

O estremecimento começou em 2003; em uma missa com a presença de Néstor Kirchner, então presidente, Bergoglio criticou o “exibicionismo e os anúncios estridentes dos governantes”.

Três anos depois, a situação piorou quando o então cardeal deu autorização para que o bispo de Puerto Iguazú entrasse na política e liderasse um grupo de constituintes para barrar uma reforma na província de Missiones (fronteira com Brasil) que previa habilitar a reeleição indefinida para governador.

Dali cresceu uma ruptura que, diz o biógrafo autorizado do papa, o jornalista argentino Sergio Rubin, foi explorada pelo kirchnerismo. Membros da corrente política passaram a acusar Bergoglio de ter sido cúmplice dos militares na época da ditadura (1976-1983), algo nunca comprovado.

Em 2010, o religioso chegou a ser chamado para depor na Justiça sobre o caso de dois padres que foram presos e torturados durante o regime. Bergoglio disse que tentou intervir por eles, em vão, inclusive perante o ditador Jorge Rafael Videla (1925-2013) e a cúpula das Forças Armadas. O processo concluiu que ele não colaborou com os militares.

Anos depois, o próprio Bergoglio, já papa, revelou que um dos juízes lhe havia contado ter sido pressionado pelos Kirchners para investigá-lo. Na mesma época, uma ampla investigação da Igreja Católica mostrou que Francisco ajudou ao menos 30 pessoas a se livrarem da perseguição dos militares, algumas delas fugindo do país.

O argentino carrega dores desse período, já verbalizadas. Uma grande amiga dele, a paraguaia Esther Ballestrino de Careaga, que o havia ajudado na época em que se formou técnico em química, foi assassinada pelos militares.

Ela foi uma das mães da Praça de Maio sequestradas em 1977 na Igreja de Santa Cruz, em Buenos Aires, e lançadas ao mar em um dos “voos da morte”. Meses antes, Bergoglio a havia ajudado a se desfazer de livros políticos vistos como comprometedores pelos repressores.

Uma vez pontífice, apesar dos atritos, Francisco recebeu Cristina Kirchner em muitas ocasiões. Dois anos antes de ele assumir a chefia da Igreja Católica, ela havia sido reeleita com mais de 54% dos votos.

“Digamos que isso caiu muito mal para os antikirchneristas, em um universo de muita polarização”, diz Sergio Rubin. “Há muitas paixões em tudo, e é preciso evitar simplificações. O papa não era kirchnerista. De nenhuma maneira.”

O próprio papa, questionado por Rubin em um de seus livros, disse não ser peronista, mas deixou em aberto que podia ter identificação com valores da corrente política em sua origem, nos anos 1940, quando ainda era ligada à defesa da justiça social e da Igreja Católica.

O biógrafo diz que a relação Bergoglio-Cristina chegou ao seu limite em determinado momento. “Cristina explorou politicamente, seguia o papa em vários países. Chegou a levar um grupo de sua organização política, o La Cámpora, fosse à residência dele no Vaticano.”

A politização em torno do pontífice ganhou novos contornos com Javier Milei, que se choca frontalmente com Francisco por crer que o Estado não deva ter nenhuma função social.

O presidente já o chamou de imbecil e de “representante do mal na Terra”. Disse, ainda, que o papa teria “afinidade com comunistas assassinos” e que violava os Dez Mandamentos ao “defender a justiça social”. O mesmo Milei, porém, o convidou para visitar o país, em vão.

Para Rubin, a polarização levou o país a se colocar diante de uma grande oportunidade perdida. “Não tenho dúvidas de que, à medida que passarem as paixões, a figura de Bergoglio e o apreço por ela vão crescer.” Francisco morreu sob uma relação mal resolvida com sua terra. Em entrevista ao jornalista argentino Nelson Castro, para o livro “La Salud de los Papas” (a saúde dos papas, em espanhol), publicado em 2021, foi taxativo: “[Morrerei] Como papa, em atividade ou emérito. Em Roma. Para a Argentina, não volto mais, não tenho saudades dela. Vivi lá 76 anos. O que me aflige são seus problemas”.