SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Os meses iniciais de papado do argentino Jorge Mario Bergoglio, morto nesta segunda-feira (21), aos 88 anos, levaram observadores menos familiarizados com o funcionamento da Igreja Católica a achar que uma revolução estivesse por vir. O passar dos anos desfez as expectativas mais afoitas, mas também revelou um pontífice dedicado a implementar mudanças profundas e de longo prazo no catolicismo -ainda que não da maneira esperada pelo público não religioso.
No programa de Francisco, o primeiro elemento fundamental foi ir ao encontro do que ele costumava chamar de “periferias existenciais”. Em suma, seu pontificado se pôs a operar com base na premissa de que a fé católica do futuro estará cada vez menos ligada aos seus antigos centros de poder e influência na Europa (e, em menor grau, na América do Norte) e será cada vez mais latino-americana, africana e asiática.
Isso se reflete em elementos tão diversos quanto a constante preocupação do papa e do primeiro escalão do Vaticano com o tema dos migrantes e refugiados globais e a formação de um colégio de cardeais (o grupo de “eleitores” e “candidatos” a futuros papas) tremendamente diversificado, com forte participação de países em desenvolvimento que nunca tinham tido um representante desse tipo.
As “periferias existenciais” -migrantes, refugiados, pobres, idosos, jovens- estariam, segundo Francisco, sob o assédio da “cultura do descarte”, uma visão exclusivamente instrumental e econômica do valor dos seres humanos, uma “economia que mata”. Trata-se de uma crítica ao capitalismo que, de um lado, reitera boa parte do magistério papal moderno, em especial a partir dos anos 1960, mas que leva essa postura a assumir sua encarnação mais radical até agora.
Um impulso semelhante pode ser detectado na maneira como o pontificado do argentino levou até o limite outra tendência já presente nos ensinamentos de João Paulo 2º ou Bento 16: a oposição a qualquer atitude contra a vida humana, ainda que pragmaticamente justificada. Francisco não cedeu um milímetro na condenação ao aborto, mas também fez questão de condenar a pena de morte em todas as circunstâncias e de criticar a chamada doutrina da guerra justa, aceita pela maioria das vertentes cristãs desde os últimos séculos do Império Romano.
As mudanças defendidas por Francisco na maneira como o catolicismo encara as grandes questões do século 21 enfrentaram oposição cada vez mais forte por parte de membros conservadores da hierarquia católica, em especial alguns cardeais que tinham ganhado força no papado de Bento 16, bem como leigos alinhados a eles do ponto de vista político e religioso.
É bastante provável que, no universo de quase 1,4 bilhão de católicos pelo mundo, a insatisfação com Jorge Bergoglio fosse comparativamente insignificante do ponto de vista numérico. Mas seus adversários mais ferozes acabaram sendo impulsionados pela cultura polarizadora e performática das redes sociais e pela ascensão global da direita radical, que fez com que, para muita gente, as posições do papa deixassem de parecer razoáveis.
As polêmicas tenderam a se concentrar em torno de documentos papais que fizeram mudanças na prática pastoral –ou seja, na maneira como sacerdotes e bispos lidam com os fiéis, e não propriamente na doutrina. Além da possibilidade de comunhão para católicos divorciados que estão num segundo casamento, abriram-se as portas para bênçãos a pessoas em uniões ditas “irregulares” — o que poderia incluir casais homossexuais.
Em diversas ocasiões, os cardeais críticos de seu papado usaram um método tradicional para expor sua contrariedade: o envio das chamadas “dubia” (“dúvidas”, em latim) após a publicação de documentos polêmicos por parte de Francisco e seus colaboradores. Exigiam, em outras palavras, que o papa esclarecesse o que queria dizer com certas passagens, enquanto Francisco preferia formular diretrizes que dessem certa margem de manobra a bispos e sacerdotes de cada local.
Se não foram formalizadas alterações significativas sobre questões como o trabalho pastoral com fiéis homossexuais, a possibilidade de ordenar homens casados como sacerdotes ou mulheres como diaconisas (ministério anterior ao sacerdócio) e a perspectiva de que o diálogo sobre esses temas continue são inegavelmente surpreendentes.
O mesmo vale para a abertura à possibilidade de que fiéis divorciados que se casaram de novo tenham acesso à comunhão, algo que poderia ocorrer caso a caso e após um processo de aconselhamento com o bispo da região que esses fiéis frequentam. É uma mudança discreta para quem está do lado de fora, mas próxima do impensável diante da maneira como o tema era encarado em pontificados anteriores.