Toda última quinta-feira do mês, bem cedinho, um caminhão começa a percorrer a estrada cheia de curvas e entre morros que liga a cidade de Barra do Turvo, no interior de São Paulo, e a BR 116. Ele recolhe alimentos cultivados e produzidos por cerca de 70 agricultoras organizadas em 11 grupos que compõem a Rede de Agroecológica de Mulheres Agricultoras (RAMA).
O dia vai clareando e, no percurso, o caminhão apanha as caixas arrumadas à beira da estrada pelas agricultoras dos bairros da zona rural onde há participantes da RAMA. Nas caixas vão mudas, farinhas, café, pães, feijões, palmitos, açúcar mascavo, banha, chips de banana e mandioca, salgados, doces, geleias, conservas, mel, queijo e ricota, massas e bolos, temperos, polpas de frutas, fitoterápicos, legumes, verduras e frutas in natura. São cerca de uma tonelada de centenas de variedades de vegetais e dezenas de alimentos preparados artesanalmente.
Em fevereiro, quando visitamos Barra do Turvo, um dos produtos ofertados era tema de conversas no país inteiro, por conta da alta dos preços: os ovos. No caso, ovos de galinhas caipiras, vendidos pelas agricultoras a R$ 15 a dezena, enquanto nos supermercados de São Paulo a dezena chegava a R$ 19. Os preços da rede são reajustados somente uma vez por ano, em assembleias das produtoras com os grupos de consumo, independente da carestia dos alimentos. Isso é possível porque a comercialização da organização, que completa uma década em 2026, não se baseia em princípios do mercado.
Seus fundamentos são a economia solidária, o feminismo, a agroecologia, a soberania alimentar, a defesa dos territórios e modos de vida das agricultoras, o combate ao racismo e a todas as formas de violência. Esses princípios também são adotados pela rede de grupos de consumo solidário que compra os alimentos da RAMA, chamada Esparrama.

Há grupos auto-organizados nas cidades de Registro, Diadema e nas zonas Oeste, Leste e Sul de São Paulo, além de pontos de venda como o Instituto Baru, o Instituto Chão e o Instituto Terra Viva, todos na cidade de São Paulo. Os acordos de funcionamento da rede foram elaborados coletivamente e resguardam a autonomia das mulheres sobre a produção. A adoção de regras diferentes das praticadas pelo mercado torna possível a prática de preços justos, tanto para quem produz quanto para quem compra.
hUm dos segredos da estabilidade nos preços da RAMA é que “as agricultoras têm autonomia em relação ao mercado conectado com a economia global, as suas oscilações, as especulações do mercado financeiro”, constata Natália Lobo, técnica da equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOF). “É diferente de ser um produtor que precisa comprar adubo nitrogenado para plantar, e quando tem guerra na Ucrânia o preço do adubo vai lá para cima. Outra coisa é ter um sistema de produção bastante autônomo em termos de insumos necessários para o plantio e a criação, com relações muito desmercantilizadas em comparação ao resto da agricultura convencional”, explica.
Além disso, se os ovos sobem de preço porque o milho subiu, há sempre a possibilidade de comprar milho das vizinhas, por meio de relações de cuidado, confiança, interdependência e reciprocidade que também são cultivadas entre as mulheres. A mesma coisa vale para mudas e sementes, doadas ou trocadas, e para o conhecimento desenvolvido por meio das experiências com o plantio em seus quintais, sempre compartilhado entre elas. O valor dessas relações não é considerado pela economia clássica.

Compromisso com as mulheres
“Nós começamos a RAMA pra ajudar o direito das mulheres. Porque tinha muitas mulheressofridas, muitas mulheres sem palavras, prejudicadas pelo marido, muitas apanhavam e não tinham direito a um dinheiro, nada, só dependendo do marido, né? Isso é que veio primeiro.” É assim que dona Dolíria Rodrigues de Paula, moradora do quilombo Ribeirão Grande-Terra Seca, explica a origem da rede, em 2015, a partir de um trabalho de assistência técnica e extensão rural (ATER) da organização SOF no Vale do Ribeira.
Nilce Pontes, coordenadora da Associação do Quilombo Ribeirão Grande-Terra Seca, participante da RAMA e da Articulação Nacional de Agroecologia, conta que a relação entre a SOF e as comunidades quilombolas começou no III Encontro Nacional de Agroecologia, em 2014. “A SOF já estava fazendo o programa de extensão rural na região. Então a Miriam Nobre, da SOF, veio conversar comigo.”
Naquele momento, em Barra do Turvo, havia assistência técnica e extensão rural do sindicato de trabalhadores rurais e havia a da Cooperafloresta, uma associação de agroflorestas. Mas as mulheres precisavam de algo que levasse em conta sua condição de… mulheres. Depois da conversa no encontro de agroecologia, a SOF foi à Barra do Turvo se apresentar às quilombolas. Dona Isaíra Maria de Pontes Maciel Pereira, mãe de Nilce e neta de Miguel Pontes Maciel, fundador do quilombo Ribeirão Grande, perguntou: “Esse trabalho de vocês. É serviço ou é compromisso?” Era compromisso. É até hoje.

No Vale do Ribeira, que fica na fronteira entre os estados de São Paulo e do Paraná, está a maior porção contínua de Mata Atlântica do Brasil, totalizando 1,7 milhão de hectares. Ali vivem muitas comunidades tradicionais: quilombolas, povos indígenas Guarani e Kaingang, caiçaras. As mulheres que formam a RAMA moram em comunidades rurais de Barra do Turvo, um município com 6,9 mil habitantes. A maioria trabalha em suas roças e quintais desde crianças, usando técnicas de manejo aprendidas com mães, avós, bisavós e agricultoras vizinhas.
As mulheres da RAMA têm diferentes formas de (ou falta de) acesso à terra, dependendo de como se constituiu a comunidade a que pertencem. Além de quilombolas, há pequenas agricultoras que vieram de outros estados e descendentes de famílias de trabalhadores rurais de Barra do Turvo. As comunidades quilombolas vivem há gerações na região e participaram da criação da Cooperafloresta, em 1988, para onde levaram seus conhecimentos tradicionais sobre como cultivar alimentos em meio a árvores, sem precisar “limpar” a área de cultivo e replantar tudo de novo depois de cada colheita. Elas vivem em meio à Mata Atlântica.
Em 2005, essas comunidades formaram uma associação para fazer seu autorreconhecimento como remanescentes de quilombos e exigir a titulação das terras que habitam. Na RAMA, também há mulheres que estão organizadas na Comissão Pastoral da Criança desde os anos 1980; há mulheres mobilizadas na resistência contra a tomada de suas terras por unidades de conservação; há agricultoras familiares com pouca ou nenhuma área de cultivo – suas terras foram tomadas por fazendas ou vendidas pelos mais velhos a fazendeiros, por pouco ou quase nada, em meio a conflitos fundiários causados pelo ciclos de expansão de monoculturas ou da pecuária no município.
RAMA é uma palavra que brota do chão, na forma de muitas plantas. Mandioca, abóbora, cará, chuchu, maracujá, uva… As agricultoras de Barra do Turvo contam que o nome de sua rede é como a diversidade das plantas que cultivam, em especial a batata doce cultivada pelas antepassadas. “Somos como a rama da batata doce que, plantada cada qual a sua forma, em uma roda, em coroa, em leira, começa a enramar, se espalha, vai tomando espaço e produz raízes que garantem alimento”, escreveram em seu combinado coletivo.
Quando a SOF começou a trabalhar no Vale do Ribeira, em 2015, uma das primeiras coisas que as agricultoras disseram foi: “A gente sabe plantar, a gente faz isso toda a vida. Precisamos comercializar.” Enquanto elas tiverem garantia de permanência em suas terras, os alimentos saudáveis, produzidos de forma agroecológica, estarão no campo. E grupos de pessoas podem se organizar para comprar esses alimentos. O que falta é ampliar o apoio a esta produção ligada à vida das mulheres e à logística necessária para que essas ramas cheguem às pessoas que vivem nas cidades
Fonte: Ciclo Vivo