SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após descobrir um câncer no útero em 2017, a empregada doméstica Fernanda (nome fictício), 52, precisou se afastar do emprego para o tratamento, mas acabou demitida e entrou em depressão. No aperto, topou fazer um trabalho de “mula” -transportar drogas- e acabou presa em flagrante por tráfico. Mãe de seis e moradora de uma favela na zona norte paulistana, soube que os filhos haviam ido parar num barraco.

Ao sair da cadeia após cinco anos e dez meses, a mulher achava que sua dívida com a Justiça estava reparada, mas foi intimada a pagar uma pena de multa de R$ 18.539,40. A Defensoria Pública chegou a pedir a extinção da multa por hipossuficiência econômica -indicado pelo fato de Fernanda ter sido assistida por defesa pública-, solicitação considerada prematura pelo juízo do caso.

Assim, o Ministério Público, responsável por executar a cobrança, buscou os bens de Fernanda em agosto do ano passado. Foi quando ela tentou comprar uma geladeira que descobriu que o dinheiro em sua conta, cerca de R$ 3.800, havia sido bloqueado.

Segundo a advogada Ingrid Ortega, que entrou no caso, o montante era seu salário daquele mês, complementado por algumas diárias. A indicação de valores levou o juiz a dizer que ela teria condições de pagar a multa.

Mesmo sem antecedentes criminais ou conexão com o crime organizado, ela foi condenada por tráfico, crime hediondo. Hoje, seu processo está no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e ela continua com a pena aberta. Ou seja, seu título eleitoral e seu CPF estão suspensos, e ela também não tem acesso a benefícios sociais. “Ela não consegue entender porque é que o juiz está atrás do dinheiro dela. Ela chora, e fala ‘meu Deus, eu paguei tudo'”, diz Ingrid.

A pena de multa da doméstica é uma das 187,5 mil emitidas, em média, por ano em SP, segundo dados do Tribunal de Justiça de São Paulo enviados à reportagem. Os dados consideram o período de 2015 a 2023. Já as multas pagas nesse mesmo intervalo foram, em média, 7.318.

Prevista na Constituição e regulamentada no Código Penal, a pena de pagamento é calculada pelo juiz de acordo com dias-multa. Até poucos anos atrás, o dispositivo não gerava problemas ou alongamentos de processos na Justiça, ocupando parte do tempo de promotores, advogados, defensores e juízes.

A multa era cobrada pela Procuradoria-Geral do Estado por meio da Fazenda Pública. Em valores atualizados, o número mínimo para ajuizamento de execução fiscal é de 1.200 unidades fiscais -índice usado para calcular impostos e corrigir valores monetários, correspondentes, em 2025, a R$ 44.424. Abaixo disso, a cobrança é administrativa, segundo a PGE. E, por vezes, era extinta, segundo especialistas ouvidas pela reportagem.

O cenário mudou em 2018 e 2019, quando uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) e a aprovação do chamado pacote anticrime transferiram a competência primária para a execução de cobrança da pena de multa para o Ministério Público. Enquanto não for paga, o processo fica aberto. A maior parte das penas de multa emitidas pela Justiça entre 2015 e 2023 trata de valores até R$ 500.

Os casos de Roberto, condenado por receptação, com multa de R$ 348,33, e João (ambos nomes fictícios), que cumpriu dez anos por roubo e foi multado em R$ 206,54, ilustram a peleja por valores baixos.

O processo de Roberto, atualmente desempregado, segue aberto. Em 2022, o promotor do caso reconheceu que o valor era irrisório, mas não pediu a extinção da multa. Em vez disso, preferiu aguardar para cobrá-la. Mas outro promotor que passou a cuidar do caso discordou do colega e do pedido da defesa atual, feita pelo advogado Salvador Scarpelli Neto, para extinguir a cobrança.

Scarpelli vai pedir a aplicação para Roberto do indulto presidencial natalino de 2024, que inclui entre os beneficiários os hipossuficientes.

O outro caso atendido pelo advogado, de João, chegou ao fim no STJ. Após cumprir dez anos de cadeia por roubo em São Paulo e sair em 2021, João, pai de dois filhos e também desempregado, teve os bens pesquisados pela Justiça, que encontrou R$ 7,88 em algumas contas. A decisão final, que extinguiu a pena, ocorreu em julho de 2023.

Os casos, atendidos gratuitamente pelos advogados, foram parte de um mutirão realizado pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) iniciado em 2022, ao qual eles são associados, em parceria com outras organizações, como a Associação de Familiares e Amigos de Pessoas Presas (Amparar), a Rede Rua e o Instituto Liberta.

Para a defensora pública Rivana Ricarte, do Acre, o baixo número de penas de multa pagas, na comparação com as emitidas, pode ser um reflexo do perfil de presos. “Quem trabalha no sistema penitenciário sabe. A maioria das pessoas que esta lá é economicamente vulnerável. É evidente que isso vai refletir na possibilidade do pagamento da pena de multa.”

É o que também afirma a diretora-executiva do IDDD, Marina Dias. “Não é só uma questão de reaver o dinheiro ou aplicar a pena, é também uma política de criminalização que faz definhar gente pobre, preta e periférica.”

Um relatório do instituto baseado em 241 casos acompanhados no mutirão mostrou que 80,7% dos atendidos se identificavam como negros (pretos ou pardos), 72% não haviam finalizado o ensino médio e 61,4% estavam desempregados. Havia ainda 19% de atendidos que estavam em situação de rua.

“Houve muita discussão com casos de mensalão e Lava Jato sobre a pena de multa, e aí a pena pecuniária passa até a fazer sentido. Mas quem acaba realmente sendo prejudicada é a clientela do sistema de Justiça.”

Segundo Rivana, não há uma padronização na execução dessas cobranças entre unidades da federação. Ela sugere reflexões tanto do Ministério Público quanto do Judiciário para evitar distorções.

Segundo o procurador de Justiça Paulo de Palma, o Ministério Público de São Paulo tem estudado medidas internas para o que ele chama de racionalizar o trabalho da promotoria. “Nossa ideia é, de fato, deixar de cobrar multas de valor ínfimo.”

O Ministério Público, diz de Palma, tem a função legal de executar as multas. Mas a reavaliação de como fazer isso tem mudado após uma decisão do STJ do ano passado sobre o tema 931, que trata da extinção da punibilidade após a alegação de hipossuficiência, segundo voto do relator, o ministro Rogerio Schietti Cruz. Dessa forma, o juízo daquele caso deveria indeferir a extinção apenas se houvesse indícios suficientes e provas nos autos de que a pessoa tivesse condição de pagar.

“Além de se pensar no executado (a pessoa que precisa pagar), pensamos também na eficácia do trabalho: o gasto do processo em cotejo com o que se busca de recuperação de crédito, e isso incomoda muito”, afirma de Palma, que cita também que a pena de multa não pode funcionar como uma nova punição, mantendo o processo aberto.

Para ele, a alta de pagamentos em 2018 e 2019 pode ter sido um reflexo das decisões do momento no STF e no Legislativo, situação que foi se acomodando nos anos seguintes.