SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Certa vez um jornalista da revista The New Yorker foi visitar o escritor Richard Powers em sua casa na região do parque Great Smoky Mountains, no leste dos Estados Unidos. Ao longo de um passeio, o autor comentou que eles estavam em uma área bem nova de floresta. “Aquela árvore ali, por exemplo, deve ter no máximo cem anos”, disse ele, para confusão do repórter. “Achei que você tinha dito que as árvores eram jovens.” “Pois é”, ele disse, sorrindo.
As plantas transformaram a vida de Powers de mais de um jeito. Ele já era um escritor respeitado, de literatura atenta a temas científicos e tecnológicos, quando começou seus anos de árdua pesquisa para o livro que se tornaria “A Trama das Árvores”.
Àquela altura, era professor da Universidade Stanford, no estado americano da Califórnia. Como buscava entender mais sobre a diversidade das matas originárias de seu país, ouviu recomendações para conhecer o parque nacional onde tempos depois receberia o visitante, entre os estados da Carolina do Norte e do Tennessee.
“Sabe, 99% da floresta primária original da América do Norte foi cortada, e aqui há bolsões que permitem ver como a floresta era até 10 mil anos atrás”, conta ele. “Quando eu andei da parte que já havia sido desmatada para a área completamente intocada, foi uma diferença como a noite para o dia. O ar mudou, o cheiro mudou, os sons mudaram, a quantidade de espécies e a qualidade da luz mudaram.”
Quem também mudou foi Powers, que largou seu emprego numa das universidades mais prestigiosas do mundo, há nove anos, para morar na região do parque e se dedicar a este livro que já estava, em suas próprias palavras, virando “uma monstruosidade enorme”.
O romance apresenta de cara sua notável ambição, entrelaçando oito histórias paralelas ao longo de décadas -até séculos. Acompanha as pessoas mais variadas, de um militar traumatizado a uma jovem ativista, de uma cientista desacreditada a um gênio dos games virtuais, que têm sua vida impactada pelas plantas.
O livro saiu em 2018 nos Estados Unidos com o título “The Overstory”, algo como a história que paira por cima. Chega agora ao Brasil pela Todavia com sete anos de atraso e quase 650 páginas como “A Trama das Árvores”, com tradução hercúlea da também romancista Carol Bensimon.
E as pretensões de Powers foram atendidas -a obra não só venceu o prêmio Pulitzer de ficção como vendeu mais de 2 milhões de exemplares pelo mundo.
A carreira do autor mudou da água para o vinho depois do livro, não só pelo reconhecimento que passou a obter pelo trabalho tido como sua obra-prima, no estilo “grande romance americano”, mas porque a perspectiva aberta pela natureza contaminou sua literatura de forma irrefreável.
É impreciso citar os personagens elencados alguns parágrafos atrás como os protagonistas de “A Trama das Árvores” -quem move os acontecimentos são as plantas. Se isso pode estar soando como uma bobagem hippie com eucaliptos sábios e samambaias falantes, vale frisar que o projeto de Powers é fundado na sutileza e numa reforma bem pensada da estrutura romanesca.
“Eu persegui a ideia de usar o romance, que é a forma humanista por excelência, para contar uma história mais que humana, a história da interdependência e da rede de reciprocidade que existe no mundo”, afirma o americano. “Não podemos entender a nós mesmos se não for em alinhamento com nossos vizinhos não humanos. Não somos uma história separada e não podemos nos narrar assim.”
Isso é ilustrado por um trecho, ainda no começo do livro, em que um personagem tomba pelo ar em direção à morte certa. “O grito dele perfura o ar, e seu corpo cai sobre os galhos da figueira, aquela floresta de uma única árvore que cresceu por 300 anos bem a tempo de amortecer sua queda.”
Powers lembra outra citação da obra, que diz que este não é o nosso mundo e as árvores estão nele -na verdade, é o contrário. “Se você pensar, as árvores existem há 400 milhões de anos, e os humanos modernos estão aqui há no máximo 200 mil anos. A Terra é uma história de árvores há 2.000 vezes mais tempo que ela é uma história de seres humanos.”
Como transpor essa lógica para a literatura? “Uma chave é promover essas entidades não humanas a uma posição de sujeito, fazer com que os humanos da narrativa se deem conta de que não estão lidando com objetos, mas com aquilo que permite a sua própria existência”, diz Powers.
A meta, então, é que os leitores ganhem consciência de que as formas amadeiradas que vemos todo dia ao andar pelas ruas não são só um amontoado de verde, afirma o autor, mas “criaturas com características, comportamentos e possibilidades distintas”.
Entre os que dizem ter tido seu olhar alterado por Powers, há gente do calibre do ex-presidente Barack Obama e do multibilionário Bill Gates, que escreveu uma resenha elogiosa em seu site dizendo que o livro o “fez pensar de maneira diferente sobre sua relação com as árvores”, mesmo com sua “visão negativa sobre a humanidade”.
“Não me surpreende que alguém tão investido na cultura do capitalismo de exploração de commodities confundiria minha visão dessa cultura com minha visão da humanidade”, diz Powers. “Para ele, os dois são a mesma coisa. Mas eu quero dizer que, pela maior parte da nossa história, nós não fomos esses individualistas, exploradores de recursos. A humanidade não é isso. A condição aberrante é a nossa de agora.”
Ressaltar um ponto de vista literário que mostra nossa existência como efêmera em relação a muito do resto da natureza é essencial no projeto do autor.
“A sedução da tecnologia, que nos faz pensar em prazo muito curto, causou as duas grandes crises do presente -a catástrofe do clima e a extinção em massa de espécies. É precisamente pela meditação sobre nossa pequenez em relação às coisas não humanas que conseguimos entender melhor qual pode ser nosso papel no grande quadro das coisas.”
Powers não é um ludita, claro, e conversou com a reportagem por meio de uma ligação de Zoom pelo celular. Quando o repórter quis saber onde ele estava, tentou mostrar a visão matutina que ele tinha para a reserva natural, mas achou mais promissor descrever, em sua voz afável e cheia de deslumbre.
“Como é primavera, as árvores estão florescendo, então se vê rosa, branco, púrpura, creme e todo tom de verde. Há um arco-íris bem ali fora da minha janela”, diz. “Parece uma tela impressionista.”
A TRAMA DAS ÁRVORES
Preço R$ 129,90 (648 págs.); R$ 89,90 (ebook)
Autoria Richard Powers
Editora Todavia
Tradução Carol Bensimon