FOLHAPRESS – No livro “Horror Noire”, a pesquisadora americana Robin Coleman define os “filmes negros de terror” como aqueles nos quais as tramas de perturbação, monstruosidades e medos têm presença também de questões sobre identidade racial. No caso, “a cultura negra, sua história, ideologias, experiências, políticas, linguagem, humor, estética, estilo, música e coisas do tipo” se integram ao insólito da narrativa convencional do gênero.
Se nas franquias “Creed”, em 2015, e “Pantera Negra”, em 2018, o diretor Ryan Coogler transitou com naturalidade e pungência pela vivência negra na América, o projeto autoral de horror “Pecadores” atinge um ponto alto de suas ambições, especialmente pelo caráter pessoal da empreitada.
O cineasta se inspirou na trajetória do avô materno, que veio do Mississipi para morar na Califórnia, e de um tio que o fez se apaixonar pelo blues, ritmo influenciado por sonoridades africanas e cuja invenção se deu no Sul dos Estados Unidos no final do século 19.
Tudo isso está no enredo de “Pecadores”, ambientado na região do Delta do Mississipi, em 1932, quando leis de segregação racial imperavam no país e afetavam sobretudo o Sul, a menos de 70 anos desde a abolição da escravatura.
Nesse cenário, o filme segue um dia na vida dos gêmeos Fumaça e Fuligem, ambos interpretados por Michael B. Jordan. A dupla circula pela cidade arregimentando amigos para fundar um clube de blues, espaço a ser também um foco de resistência num lugar ainda marcado pelo racismo e pela exploração da mão de obra negra nas fazendas de algodão.
A partir do conceito de que os griôs, figuras míticas da cultura africana, podem abrir as portas de outros mundos e atrair seres indesejados, “Pecadores” tem um estopim narrativo que o leva a caminhos surpreendentes e pelos quais Coogler consegue administrar de maneira bastante orgânica uma enorme quantidade de ideias.
É um filme com viés de blockbuster feito por um ex-trabalhador da Marvel que lança mão de tudo que o fascina e encanta, como se ele estivesse na única oportunidade de mostrar tudo que lhe interessa. “Pecadores” pode ser resumido como uma reapropriação do cult “Um Drink no Inferno”, de 1996, se este tivesse sido escrito a partir de um romance de William Faulkner.
Misto de conto gótico sulista com “exploitation” de horror, o filme desenvolve pequenos núcleos de personagens, todos eles em relação direta com os gêmeos, para culminar na inauguração da casa musical, que será palco de dramas e tragédias a afetar todos em cena.
O blues não só é elemento estruturante desde o início, quando se vê um personagem ensanguentado carregando os restos de um violão, mas é ainda o símbolo de seu imaginário.
Coogler faz da musicalidade do Sul mais que um artifício para atrair energias de outros mundos: ele a amplifica à história da América negra de antes e depois do tempo de “Pecadores”. Faz isso numa cena específica impressionante, centro nervoso da trama, para onde ele mergulha e de onde não quer sair.
É uma sequência tipicamente de cinema, na qual imagens e sons se conjugam na incorporação da liberdade imaginativa e do antinaturalismo que colocam “Pecadores” num outro patamar estético e narrativo.
Dali adiante, a imaginação de Coogler se encontra com o relato de caráter mais realista até então e se deixa mergulhar, sem piedade, na violência exacerbada e nos sentidos vários do clímax e da carnificina. Cada palavreado e ataque se amplifica em som e fúria.
O diretor adota regras mitológicas básicas de uma determinada vertente do horror, que preservamos aqui para manter as surpresas. A partir dessas estruturas, Coogler ilustra com selvageria os desdobramentos dramáticos e sensíveis da experiência racial traumática e coletiva no Delta do Mississipi.
Talvez desde “Corra!”, de 2017, um filme de gênero de ampla circulação não alcançava tantas camadas desses aspectos como se faz aqui.
Por fim, dica essencial não saia durante os créditos. “Pecadores” tem um epílogo indispensável, minutos depois dos letreiros iniciarem. Relaxe e se deixe encantar.
PECADORES
– Avaliação Muito bom
– Classificação 16 anos
– Elenco Michael B. Jordan, Hailee Steinfeld, Wumni Mosaku
– Produção Estados Unidos, 2025
– Direção Ryan Coogler
– Onde assistir Em cartaz nos cinemas