SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O público de 40 mil pessoas que lotou o Allianz Parque na noite de sexta-feira, na primeira das quatro apresentações paulistanas dentro da turnê de despedida de Gilberto Gil, adorou o que viu e ouviu. O repertório espetacular já era esperado, mas o palco é impactante.

Gil canta debaixo de uma escultura em forma de espiral, ousada e intrigante, e telões flexíveis que exibem imagens do show e vídeos pré-gravados, com um uso de luzes que empolga. No entanto, fica a impressão de que o público gostaria do show com a mesma intensidade mesmo que Gil se dispusesse a cantar à frente de um fundo branco, com um palco sem nada além dele e de sua afiada banda. Sua figura e sua música são tão poderosas que poderiam dispensar qualquer outro atrativo.

O Gil que está ali no palco é aquele que habita a memória afetiva de boa parte dos brasileiros. Ele conquistou isso não apenas por seus ótimos discos, mas também por ter assumido sem pudores uma posição de guru intelectual e espiritual. Nunca se recusou a dar suas opiniões, a sofrer os efeitos de um exílio por causa delas e a demonstrar um discurso humanista irrepreensível.

Além disso, Gil sempre foi gregário e colaborativo. A lista de seus trabalhos ao lado de outros nomes da MPB é extensa e muito qualificada. Seus parceiros de jornada, além de seus quase irmãos Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, incluem Rita Lee, Chico Buarque, Milton Nascimento, Os Paralamas do Sucesso, Nando Reis e muitos outros. Por isso, uma das peculiaridades dessa turnê está nos convidados que sobem ao palco com ele.

Na abertura da turnê em Salvador, no mês passado, Margareth Menezes e Russo Passapusso foram cantar com ele. No Rio de Janeiro, a segunda parada da turnê “Tempo Rei” recebeu Caetano e Anitta. Na estreia paulistana, ele chamou MC Hariel, e os dois cantaram “A Dança”, que gravaram juntos no ano passado.

De qualquer forma, os convidados são carinhosamente levados a uma condição de coadjuvantes. Numa noite dedicada à celebração, como a que foi acompanhada por fãs extasiados na arena do Palmeiras, não adianta colocar estrelas ao lado de Gil. Ele brilha muito mais.

Aos 82 anos, a voz ainda é firme, o sorriso é franco, o discurso é gentil e amoroso, e a postura, serena. Gil se mostra ao público a figura elegante que todos acompanharam por anos. É o Gil da música, da poesia e das discussões sobre física, política, macrobiótica, ioga. É o Gil que todos conhecem dando seu adeus.

É preciso louvar a costura do repertório da turnê, tanto na escolha das canções como na ordem para apresentá-las. Há uma brincadeira simples, direta e divertida ao abrir o show com “Palco”, a letra na qual ele descreve sua relação com o ato de se mostrar ao público, e encerrar com “Aquele Abraço”, sua homenagem a Chacrinha que é a despedida mais adequada possível diante de seus admiradores.

Deu muito certo a ideia de encaixar as canções em blocos informais, separados pela temática das letras ou por gêneros musicais. “Procissão” e “Domingo no Parque”, grandes sucessos nos anos 1960, já aparecem no início do setlist, para arremessar o público nas lembranças mais antigas de um jovem que foi da Bahia para o Rio. Não por acaso, estão agrupadas com “Eu Só Quero um Xodó” e “Eu Vim da Bahia”.

Nessa perspectiva, a dobradinha “Refazenda” –em dueto com a neta, Flor– e “Refavela” faz todo o sentido, representantes emblemáticas da fase “Re”, discos da década de 1970 que exibem uma criatividade ímpar do compositor de volta ao Brasil depois do exílio em Londres.

Num mergulho no Gil incisivo quando cede a canções explicitamente políticas, “Cálice” surge isolada, com seus versos de resistência ao regime militar, escrita em 1973. Os painéis no palco exibem um depoimento de Chico Buarque, parceiro de Gil na canção de protesto. A plateia grita várias vezes “sem anistia!”. Também são exibidas imagens de vítimas da ditadura, e na plateia no Allianz Parque, que tem alguma mistura geracional, mas é predominante madura, as pessoas choraram.

Depois desse momento denso e emotivo, vem o reggae. Se alguém conseguiu esquecer que Gil foi uma figura fundamental para que o ritmo jamaicano se tornasse popular no Brasil, isso fica claro quando o cantor emenda “Não Chore Mais”, a versão que fez para o clássico de Bob Marley “No Woman, No Cry”, com “Extra” e “Vamos Fugir”, canções que o público conhece de cor e trazem algo do reggae já filtrado pelas particularidades musicais do baiano.

“Realce”, que faz o público dançar enlouquecido, e “A Gente Precisa Ver o Luar”, outro disparo de alegria, constroem um baile breve, que é atingido de frente por um disparo roqueiro. “Punk da Periferia” e “Rock do Segurança” representam no repertório o flerte declarado de Gil com uma atitude quase rock, que marca discos dele nos anos 1980.

Se a essa altura do campeonato Gil já ganhou a plateia inapelavelmente, é hora de um bloco que traz os sucessos mais confessionais e intimistas de seu cancioneiro. O público que pulou muito com reggae e rock agora fica praticamente imóvel, envolvido por versos que trazem a visão filosófica de Gil sobre certas coisas. A lista é divina: “Se Eu Quiser Falar com Deus”, “Drão”, “Estrela” e “Esotérico”. É Gil abrindo a cabeça e o coração diante de seus fãs.

O final do show segue para um clima festivo. Entre outros hits alegres, “Expresso 2222”, “Andar com Fé” e a já citada “Aquele Abraço”. No bis, foi de “Esperando na Janela” e “Toda Menina Baiana”. O público deixa o estádio certamente com uma sensação dúbia. Como Gilberto Gil pode ser tão genial? Como é possível ficar sem isso depois dessa turnê?

Além do show no sábado (12), “Tempo Rei” tem mais duas datas no Allianz Parque, nos dias 25 e 26 deste mês. Durante o ano, vai passar por várias cidades, entre elas Brasília, Belo Horizonte e Porto Alegre, além de voltar para mais datas no Rio.