SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No clássico “Anna Karenina”, Tolstói escreve que “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, mas o “Santo de Casa” de Stefano Volp desafia essa máxima.

O livro recém-lançado pela editora Record mostra que felicidade e dor podem coexistir. Como diz o autor, “o que é infelicidade para uns é felicidade para outros”.

Criado na Baixada Fluminense com seis irmãos, Volp conviveu de perto com a violência doméstica e vê na escrita a cura para suas cicatrizes emocionais. Para ele, a literatura tem o poder de desconstruir mitos —entre eles, a ideia de que famílias marcadas pela violência só podem trilhar um caminho de sofrimento. “Quis construir uma ficção que gerasse esperança apesar da dor”, afirma.

Em “Santo de Casa”, três irmãos que não convivem mais se reúnem para organizar o enterro do pai. Cada um guarda segredos e ressalvas quanto ao morto. Todos se lembram das diferentes violências que testemunharam dentro de casa, mas não estão dispostos a conversar sobre isso.

O pai, Zé Maria, é reverenciado por sua comunidade e temido por sua família. Segundo o autor, Zé Maria é como a maioria dos homens heterossexuais, que amam mais outros homens do que amam as mulheres. “Os Zé Marias estão por aí sendo reconhecidos e buscando reconhecimento de outros homens, performando o masculino para outros homens e muitas vezes contra as mulheres”, aponta o autor.

A crise da masculinidade é um dos temas centrais da obra. O patriarcado, para Volp, é um sistema que põe o homem em lugar de privilégio, mas o obriga a abrir mão de toda sua subjetividade. “Os homens precisam seguir uma cartilha de códigos que os valida para outros homens. Eles têm que falar do mesmo jeito, não podem ter certo corte de cabelo e nem cruzar as pernas.”

Zé Maria é um homem encurralado pelo sistema patriarcal, que prefere morrer a desobedecer seus códigos. Ainda assim, amou seus filhos e deixou neles uma saudade genuína. Para reforçar sua figura ambígua, Volp escolheu um nome que carrega tanto o masculino (José) como o feminino (Maria).

“Santo de Casa” é diferente dos livros anteriores de Volp. O autor de “O Beijo do Rio”, de 2022, e “O Segredo das Larvas”, de 2024, escolheu fugir da literatura comercial e agora experimentar. “Chegou a vez de correr riscos e escrever sem tantas amarras estruturais.”

Esse foi o livro que ele levou mais tempo para escrever, quase um ano, mas também o que deu menos trabalho, porque os personagens pareciam contar sua história por conta própria. “Eu nunca tinha vivido isso antes. Estava escrevendo um livro que, quando cheguei na metade do que eu tinha planejado, os personagens disseram: o livro acabou. E eu parei de escrever.”

O livro é narrado do ponto de vista do irmão mais novo, que se dirige aos outros irmãos e à mãe. Essa voz narrativa, por vezes, se funde à do próprio autor. Volp começou o livro como uma carta para sua mãe, vítima de violência doméstica durante muitos anos.

A dinâmica familiar presente no livro é a mesma que Volp via na sua e em várias outras famílias da Baixada. Em Belford Roxo, onde cresceu, percebia que as experiências domésticas se repetiam muito, desde a hora de chegar em casa até a forma como os pais batiam nos filhos.

Depois de sair de casa e encontrar sua própria família em amigos que compartilham suas vivências queer, Volp retorna às origens pela escrita. “Eu me sinto um filho pródigo que volta para casa e observa tudo diferente”, diz.

O livro não é de autoficção, segundo Volp, mas despertou nele o desejo de dissecar outras vidas. O autor dedica a obra a seu terapeuta. “Sem terapia eu não teria conseguido elaborar e nomear as dores que trouxe para ‘Santo de Casa’. E, se eu não tivesse escrito, ainda estaria adoecido.”