PEQUIM, CHINA (FOLHAPRESS) – Menos de uma hora após nova retaliação chinesa às tarifas americanas, a primeira reação do economista Li Daokui, da Universidade Tsinghua, foi afirmar que o presidente Donald Trump não entende “A Arte da Guerra”, o livro de Sun Tzu, no século 5 antes de Cristo, que aconselha conhecer seu inimigo.
Para Li, por exemplo, Trump não tem consciência de que a China está estimulando o consumidor interno, o que favorece os EUA no comércio bilateral. Ele descreve a escalada desta quarta-feira (9) como infeliz, mas afirma que vai acelerar as medidas para ampliar a demanda -assim como as restrições anteriores fizeram a Huawei criar um sistema operacional próprio, e a DeepSeek, baratear “machine learning”, em inteligência artificial.
Ele projeta que, com o mercado interno, a China deve crescer mais do que ano passado. Também que Pequim vai trabalhar com Sudeste Asiático, Brasil, União Europeia e outros para manter de pé a globalização, como um líder. Prevê a partir de agora mais investimento chinês nesses países e regiões, não transferência de exportações. E lembra que o papel dos EUA nas importações chinesas hoje é restrito.
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PERGUNTA – Como o sr. vê esta nova escalada na guerra tarifária?
LI DAOKUI – É altamente lamentável, que o presidente americano tenha escolhido lutar contra a China. Na China, temos um livro de mais de 2.000 anos chamado “A Arte da Guerra”. Ok, então esta é uma guerra comercial; se Donald Trump quer garantir que sua “Arte da Negociação” funcione, ele deve entender “A Arte da Guerra”. Um dos princípios fundamentais é que você precisa conhecer seu inimigo e a si mesmo, se quiser vencer. O presidente Trump certamente quer vencer, no entanto, ele não conhece a China o suficiente. A China não é o Japão, não é a Coreia, não é o México. É um país grande, que tem respeito pelos amigos e também quer o respeito deles. Mas quando Trump mostra políticas muito agressivas o lado chinês considera isso altamente ofensivo e se vê encurralado para retaliar, como fez. No entanto, sendo economista, estou otimista. Acredito que ambos os lados eventualmente negociarão para chegar a um acordo razoavelmente eficaz.
P – O sr. tem ideia de quando um cessar-fogo poderá ser alcançado?
LD – Nas próximas semanas, espero que os dois lados se comuniquem para colocar as cartas na mesa e chegar a um acordo. A parte mais lamentável do drama atual é que o que Trump quer não é muito diferente do que a China está tentando alcançar. Ou seja, o lado chinês tem se esforçado para aumentar o consumo interno e reduzir sua dependência do mercado externo. E Trump quer um déficit comercial menor com a China. Portanto, ambos têm caminhado na mesma direção. Mas Trump está tratando a China como um país pequeno. Isso é um impedimento para se chegar a um acordo. Ele está essencialmente travando uma guerra contra a China, então precisa ler “A Arte da Guerra”, que a China vem estudando e praticando há mais de 2.000 anos. Quanto a Trump, não sei há quantos anos ele atua no mercado, talvez 50.
P – O sr. acha que essa guerra tarifária em si pode ter um efeito negativo nos esforços para aumentar o consumo interno?
LD – O lado chinês já decidiu, no final do ano passado e também no início de março, estimular o consumo interno. O governo chinês chama isso de Ação Especial para Impulsionar o Consumo Interno. Existem dez tarefas e impulsionar o consumo é a número um. A China está tentando impulsionar o consumo, o que, na verdade, é uma jogada vantajosa para todos. Os consumidores chineses estão mais felizes, seus produtores estão mais felizes, os produtores americanos estão mais felizes e o déficit comercial dos EUA deve diminuir. Mas, aparentemente, Trump não sabia disso, então está pressionando por uma chamada tarifa recíproca, que se baseia simplesmente no déficit comercial atual. Ele não está ciente da política da China. Isso é um sinal de sua falta de conhecimento da situação chinesa. É muito lamentável.
P – Houve alguns relatos e, de fato, altercações públicas entre membros do governo Trump sobre as tarifas. O sr. acha que essas divisões podem acabar ajudando nos esforços para chegar a um cessar-fogo?
LD – Em princípio, concordo. A divisão interna no governo Trump é, na verdade, um reflexo de uma divisão na sociedade americana. Há uma enorme diferença de opinião sobre as tarifas. É por isso que não acredito que Trump conseguirá jogar esse jogo por muito tempo. De uma forma ou de outra, ele iniciará um processo de negociação.
P – O primeiro-ministro chinês conversou na terça (8) com a líder da União Europeia. O senhor espera que outros países e regiões também encarem os EUA e procurem retaliar?
LD – Bem, não se esqueça, se contarmos os países no mundo que têm a China como maior parceiro comercial, é mais do que os países que têm os EUA. A China é há muito tempo o maior parceiro comercial do Brasil. Portanto, em termos de comércio, a China tem mais países com que trabalhar. Trabalhará com esses parceiros comerciais não americanos e acelerará seu processo de negociação para alcançar uma situação vantajosa para todos. Para reduzir barreiras comerciais, reduzir tarifas, para promover o comércio com esses países como forma de compensar a guerra tarifária em curso pelos EUA. Portanto, sim, o lado chinês está pronto para trabalhar com o resto do mundo, exceto os EUA, em prol do livre comércio. O lado chinês não tentará vender seus produtos para outros países fora os EUA para substituir o papel dos EUA. Isso não é politicamente sensato e não é economicamente viável.
P – O sr. acha que isso, juntamente com um consumo interno mais forte, pode fazer a China resistir a essa crise com os EUA?
LD – Acho que sim. Deixe-me apresentar alguns números. As exportações diretas da China para os EUA representam 2,77% do PIB chinês. E o déficit orçamentário anunciado pela China é de 4% do PIB. Isso foi anunciado antes dos aumentos de tarifas. O lado chinês pode facilmente aumentar seu déficit orçamentário de 4% para 6,77%. Isso é muito fácil porque o governo central tem apenas 25% da dívida em relação ao PIB. O governo chinês pode aumentar seu déficit orçamentário e subsidiar o consumo interno. O efeito multiplicador de 1 yuan ao subsidiar o consumidor chinês resulta em 4 yuans de consumo. O governo de Xangai fez esse experimento há dois anos. O número é quatro vezes maior. Portanto, a China pode facilmente gastar 2,77% em déficit orçamentário, na verdade, um déficit muito maior. É claro que essa é uma política única, pontual. Estou apenas mostrando que as opções do governo central chinês são, na verdade, bastante amplas. Este é apenas um exemplo.
P – Pode dar outros?
LD – Flexibilizar as restrições à compra de moradia. Agora, em Pequim, em Xangai, em Guangzhou, em todas as grandes cidades, há restrições à compra de moradia. Muitas famílias que estão considerando comprar um apartamento em uma cidade diferente da sua não conseguem. O governo deveria flexibilizar suas restrições à compra de moradia. O governo também pode e deve flexibilizar as restrições ao consumo. Eu ando de motocicleta. Mais de cem cidades na China têm restrições à compra de motocicletas por famílias. Graças ao aumento de tarifas de Trump, essas reformas estão sendo aceleradas.
P – O sr. acha que o resultado dessa escalada pode ser positivo para a China, no que diz respeito à adoção de medidas de abertura e consumo?
LD – Acho que sim. A longo prazo, cinco, dez anos depois, se olharmos para trás, podemos descobrir que essa guerra tarifária na verdade é aceleradora das reformas necessárias da China. A China precisava de reformas para o consumo interno, que temos impulsionado.
P – O sr. vê nisso um paralelo do que aconteceu com Huawei e DeepSeek? Acha que essas restrições estão de fato ajudando a China?
LD – Já ajudou. Sete anos atrás, os EUA começaram a impor restrições às empresas de tecnologia. Isso despertou as empresas chinesas para pesquisa e desenvolvimento locais. E você vê a Huawei adotando o HarmonyOS como sistema operacional, que agora é o mais avançado para veículos elétricos, para direção automática. E o DeepSeek está desenvolvendo essa tecnologia para reduzir o custo do aprendizado de máquina. Então, sim, a resposta é sim.
P – O sr. mencionou em aparições públicas recentes que a China pode crescer mais neste ano do que no ano passado. Ainda acredita nisso?
LD – Sim, mantenho minha previsão. Acredito que a China acelerará suas reformas e ajustes políticos para impulsionar o consumo interno e compensar o impacto da tarifa.
P – O sr. acha que a China começará a investir mais em países como o Brasil ou talvez o Sudeste Asiático?
LD – A China trabalhará com todos esses países, Brasil e países do Sudeste Asiático, com muito cuidado para compensar o impacto dos EUA. A China trabalhará com esses países para reiniciar um sistema de investimento e comércio global sem os EUA. Porque os EUA estão cansados, muito exaustos. Os EUA não estão mais dispostos a liderar a globalização.
P – E o sr. acha que, junto com esses países emergentes e a União Europeia, a globalização pode sobreviver sem os EUA?
LD – Isso mesmo. Essa é a minha forte convicção. Escrevi artigos acadêmicos sobre isso, temos uma teoria sobre a liderança da globalização. Explicamos não apenas por que os EUA não estão dispostos a liderar a globalização, mas também por que a China está interessada em desempenhar o papel de liderança na globalização.
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RAIO-X
Li Daokui, 60, é professor de economia na Universidade Tsinghua, de Pequim. Graduado na Tsinghua, fez doutorado em Harvard, nos EUA, e foi membro do Comitê de Política Monetária do banco central chinês. É autor de “China’s World View: Demystifying China to Prevent Global Conflict”.