FOLHAPRESS – No auge da onda “Harry Potter” que varreu o planeta a partir de 1997, Harold Bloom escreveu um artigo no Wall Street Journal que levava o seguinte título: “35 milhões de compradores de livros podem estar errados? Sim”.

Bloom, talvez o crítico literário mais influente das últimas décadas, se posicionava contra a ideia de que ler “Harry Potter” seria uma boa porta de entrada para a literatura. “Se isso é o que as crianças estão lendo aos 9, 10, 11 anos, então aos 12, 13 elas lerão Stephen King, um escritor horrível, deplorável. É o que elas estarão preparadas para ler”, disse, na época.

Isso vem ao caso ao abrirmos a ficção “Alguém Sobrevive Nesta História”, primeiro livro do cineasta brasileiro Felipe Poroger, cujo narrador é tão aficionado ao personagem que pede aos amigos que o chamem de Harry.

O autor tinha por volta de 17 anos quando J.K. Rowling lançou o último livro da série, em 2007. Por isso, é provável que Bloom estivesse errado. Poroger é um exemplo daquela geração que, depois de “Harry Potter”, leu Machado de Assis e Philip Roth –ambos citados no livro. E foi além, tornando-se um autor que escreve muito bem, com clareza, ritmo, humor e ironia.

“Alguém Sobrevive Nesta História” segue um adolescente judeu paulistano, obcecado com o Holocausto, que conta sua vida desde a concepção, passando pela infância, o complexo com a gordice, o bullying, a psicanálise, o sexo etc.

É um roteiro parecido ao de “O Complexo de Portnoy”, de Roth, e que usa algumas ideias emprestadas de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado —tamanho dos capítulos, expressões como “mas divago”.

A obra apresenta ainda um suspense interessante. Ficamos sabendo que alguma coisa mudou a vida do protagonista no dia 23 de julho de 2007, mas o segredo não é revelado.

O livro vai lentamente caminhando para lá, com o narrador contando sua vida até que o chega o dia fatídico. Neste momento, começa a segunda parte do livro, que passa a ter seus capítulos divididos hora a hora.

Se o narrador enfrenta algumas dificuldades familiares reais, ele também é um garotinho mimado, bem de vida, a quem nunca faltou nada, muito amado pela mamãe judia, que fala inglês e espanhol e estuda nos melhores colégios.

É um privilegiado. E aqui parece ocorrer um curto-circuito na história, pois ele se dedica pontualmente a tentar expiar essa culpa tão cara ao movimento woke e ao pensamento politicamente correto do século 21.

O fato de, na infância, não ter se interessado pela vida pessoal da empregada doméstica que trabalhava na casa de sua família —e com quem iria perder a virgindade— vira motivo de profundo sofrimento para o rapaz adolescente.

O mesmo ocorre com demais trabalhadores, de classes sociais menos favorecidas, que passam pela sua vida —o porteiro, um cuidador, uma prostituta.

Sua ex-autora preferida não escapa da fúria. “Tudo o que eu mais queria na adolescência era que J.K. Rowling jamais parasse de escrever. Hoje, apenas rogo para que ela pare de falar merda.”

Ele se refere ao fato de Rowling ter dito que “mulheres trans não são mulheres” e não voltar atrás dessa opinião, ainda que isso tenha desagradado muitos de seus fãs, que enxergam o mundo de maneira diferente.

É o caso do adolescente de “Alguém Sobrevive Nesta História”. Agora despertado, o rapaz acaba ganhando um grande complexo —que não é o de Portnoy, mas talvez seja mais complexo.

ALGUÉM SOBREVIVE NESTA HISTÓRIA

– Avaliação Bom

– Preço R$ 76,90 (224 págs.); R$ 54,90 (ebook)

– Autoria Felipe Poroger

– Editora Todavia