SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A Invasão” é um filme sobre a resistência. Não aquela estampada nos filmes oficiais de esforço de guerra, que incitam à mobilização e sacrifício coletivo contra o inimigo. É um documentário de Sergei Loznitsa, artista bastante azedo ao poder e a mentirosas histórias oficiais. E quem resiste, então, é o cotidiano. O dia a dia, as pessoas, o cotidiano, as alegrias e desgraças, festejos, encontros e desencontros, vida e morte.
Loznitsa traz à tela a Ucrânia e sua rotina pautada pela guerra e seus horrores. O filme começa com um cortejo de soldados e civis levando os mortos e os velando numa igreja ortodoxa em imagens de densa iconografia de fotos, parentes, velas etc. Na saída, um punhado mancando. No funeral, bradam glórias à Ucrânia e aos seus heróis e morte aos inimigos.
A população fazendo compras, alguns pegando água, alguém criticando Volodimir Zelensky e um outro chamando Vladimir Putin de cretino. A polarização resiste mesmo em tempos de guerra suja e confusa.
Assim como um soldado e uma mulher jovens se casam, civis tendo aula prática de combate com fuzis, crianças migram da sala de aula para um abrigo antiaéreo sob iminente ataque russo e, o mais inusitado, pessoas mergulhando nuas num lago gelado numa espécie de batismo.
A sequência imediatamente posterior é a de um homem nadando numa academia. Logo, vemos que ele está mutilado e numa clínica de reabilitação. Surge no plano uma jovem estilosa caminhando perfeitamente com sua perna mecânica –outra imagem-síntese da resistência do povo ucraniano.
Essa leitura de Loznitsa não é da virtude e elevação espiritual, e sim a ilustração da real condição de um povo aturdido entre um presidente que, com a guerra, por consequência, soube ganhar certo capital como líder da nação e um primo próximo, a Rússia, que resolveu tocar uma inesperada “invasão esperada”.
Loznitsa é um belarusso que muito cedo se mudou para a Ucrânia e há um tempo mora em Berlim. Seu coração está com os ucranianos, as ruas, a cidade e o campo ucranianos. E seus olhos mais ainda. “A Invasão” é repleta de monumentalidade, extraída sobretudo dos rostos, dos gestos, do caminhar e uma circulação de acontecimentos e coisas que costumamos entender como vida entre a normalidade, o incomum, a alegria e a dor.
E com os planos fixos, aliás nada mais respeitoso e fora da usual câmera movente do telejornalismo, o cineasta traz à tela uma série de planos dando conta de uma série de acontecimentos. É dessa opção que vem uma sequência fortíssima, a da missa de um jovem soldado morto, seus familiares, amigos e afins em profunda dor. Esses semblantes devastados são a imagem da Ucrânia pós-invasão da Rússia em fevereiro de 2022.
Um dado interessante, Putin jamais mostrou seus mortos e suas dores. Outro dado ainda mais forte, Sergei Loznitsa mostra os mortos, mas com intenções bem distintas às de Zelensky. O diretor vai aos seres, às vidas, justamente para trazer a dimensão da violência e absurdo.
E mostra o verdadeiro Volodimir Zelensky através de um outro tipo de cerimonial. A céu aberto com os mortos na guerra em fotos, imagens, artefatos milites etc. todos reluzentes e assépticos tal o de uma expo de negócios cujo tema é, na verdade, a autocelebração do chefe de Estado.
Loznitsa entende a vida de modo outro. Nem mesmo os edifícios recém-bombardeados deixarão de ser vistos como algo além de escombros. Salas, quartos e cozinhas como corpos mutilados, com seus ladrilhos, armários e paredes pendendo nas alturas são uma analogia a um todo um modo de vida que se estraçalha numa guerra.
“A Invasão” também ganha ares quase surrealistas. A capital Kiev está sendo bombardeada enquanto um gato permanece dormindo tranquilamente numa cadeira de estofamento verde num café-livraria.
Ainda sobre literatura, livros de Fiodor Dostoievski, Vladimir Maiakovski, Vladimir Lenin, Theodore Dreiser, Stefan Zweig, Jack London e centenas de outros sendo levados à reciclagem, processo mais conhecido como destruição. Arte e vida, maiores vítimas da guerra, diz Loznitsa nessa sequência capitular.
A Invasão
Quando: 6 de abril
Onde: Na Cinemateca Brasileira
Classificação: 16 anos
Produção: França, Países Baixos, EUA, 2025
Direção: Sergei Loznitsa
Avaliação: *Ótimo*