KIEV, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – Andrii, 20, lembra-se do momento em que quatro russos armados, com os rostos cobertos por balaclavas, entraram em sua casa. Seu irmão, Oleh, 16, estava ordenhando a vaca da família no quintal, em um vilarejo em Kherson, província ucraniana ocupada pelas forças de Moscou. Era 11 de junho do ano passado. Segundo ele, os agentes da FSB, a polícia secreta russa, reviraram a casa inteira, procurando “indícios de colaboracionismo” com a Ucrânia.

Pegaram o celular de sua mãe e disseram que ela estava fazendo doações para o Exército ucraniano. Quando ela estava sendo levada pelos homens, Oleh perguntou: “Você vai para o porão, mãe? (como se referem às salas de interrogatório das forças russas). Ela fez que sim com a cabeça. No dia seguinte, os russos voltaram e prenderam o pai dos meninos, que trabalhava com irrigação. Andrii e Oleh nunca mais tiveram contato com os pais.

As forças da Rússia controlam 20% do território ucraniano. Cerca de seis milhões de ucranianos vivem em áreas ocupadas por Moscou, que invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. Desse total, 1,5 milhão é de crianças e adolescentes, como eram Andrii e Oleh à época da invasão. Todos estão sujeitos à russificação nas escolas, onde aprendem que a Ucrânia é um país neonazista. Muitos precisam abrir mão do passaporte ucraniano para conseguir acessar educação e serviços de saúde. São submetidos a constantes processos de ‘filtragem” —interrogatórios para determinar se, na visão russa, são pró-Ucrânia.

Pessoas que têm parentes no Exército ucraniano ou ocuparam cargos como prefeito, membro de conselho municipal, diretor de escola são constantemente interrogados. Muitos acabam presos.

A mãe de Andrii havia sido chefe do conselho municipal do vilarejo onde eles viviam. “As pessoas sabiam que ela era pró-Ucrânia, alguém deve ter delatado para as forças russas”, disse Andrii à Folha. Além disso, podem ter denunciado que Oleh continuava fazendo aulas online no sistema de ensino ucraniano, porque não queria se sujeitar ao currículo pró-Rússia.

De acordo com relatório da ONG Human Rights Watch, as autoridades dos territórios ocupados ameaçam os pais com multas, perda da guarda de seus filhos e prisão se não matricularem seus filhos em escolas de conteúdo russo ou se as crianças e adolescentes estudarem em instituições ucranianas remotamente.

O currículo russo inclui livros de história que justificam a invasão do território ucraniano e retratam a Ucrânia como um “E stado neonazista”, além de restringir o ensino da língua ucraniana.

Segundo Yulia Tukalenko, psicóloga da fundação Vozes das Crianças, crianças que vivem sob ocupação frequentemente sofrem de estresse crônico, ansiedade elevada, distúrbios do sono e medo persistente. Isso afeta a capacidade das crianças de aprender e formar novos relacionamentos. “Em territórios ocupados, os adultos muitas vezes são associados ao medo, perigo e coerção — a criança pensa que, a qualquer momento, alguém possa invadir sua casa ou proibi-la de falar livremente na escola”, diz Tukalenko. “Para os adolescentes, esse ambiente pode criar um conflito interno entre a necessidade de sobreviver e a luta para permanecerem fiéis a si mesmos —especialmente quando são forçados a se manter em silêncio, fingir ou concordar com coisas que vão contra sua identidade.”

Um mês após a detenção de seus pais, Andrii foi a um posto de controle russo buscar informações e preencher um formulário de pessoas desaparecidas. Ele relata ter sido interrogado, ameaçado pelos policiais russos armados e pressionado a atuar como informante, denunciando pessoas supostamente pró-Ucrânia e parentes de militares ucranianos.

Depois disso, Andrii e seu irmão fugiram de Kherson. “Era um clima de medo permanente”, conta. Quando os dois passaram a morar sozinhos em casa, temiam que o irmão menor fosse deportado para um campo de reeducação e Andrii acabasse convocado para o Exército russo.

Segundo o Laboratório de Pesquisa Humanitária da Universidade de Yale, a Rússia usa ao menos 43 acampamentos infantis para abrigar crianças deportadas, sendo que pelo menos 32 deles são explicitamente instalações de “reeducação”. Sob o regime de Josef Stalin (1927-1953), a União Soviética usava esse tipo de acampamento para “russificar” crianças soviéticas de outras etnias.

Andrii e Oleh fugiram com ajuda da organização Save Ukraine, que resgata e dá apoio a crianças e famílias de regiões ocupadas pelos russos. Desde 2022, a entidade organizou missões de resgate de 617 crianças de áreas sob controle russo.

Segundo Mikola Kuleba, presidente da organização, um dos casos mais comuns é a transferência forçada de crianças para os chamados “campos de reeducação” na Rússia ou na Crimeia. “Também encontramos frequentemente situações em que os pais de uma criança são mortos, e as autoridades russas imediatamente os classificam como órfãos, abrindo caminho para sua adoção forçada na Rússia”, diz Kuleba.