SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que está por trás da origem da icônica Faculdade de Direito da USP, que formou uma série de personalidades ilustres e foi palco de eventos históricos dos grandes movimentos políticos do país? Uma biblioteca. Mais precisamente, a primeira biblioteca pública de São Paulo, que agora completa 200 anos.

Inaugurada em 24 de abril de 1825, nos fundos do convento dos franciscanos, à época o maior prédio da pacata província de pouco mais de 10 mil habitantes, a biblioteca daria origem, dois anos depois, à famosa faculdade do largo São Francisco, a mais antiga unidade da Universidade de São Paulo.

Contava então com cerca de 5.000 livros, provenientes de bibliotecas particulares de bispos. Era um acervo considerável para o período, o que ajudou a convencer o imperador dom Pedro 1º a escolher São Paulo para sediar a primeira faculdade de direito do país, simultaneamente à de Olinda (PE) –ambos os cursos jurídicos, como eram chamados, foram criados por decreto em 11 de agosto de 1827, e as aulas começaram em 1828; as de São Paulo, em março, e as de Olinda, em junho.

Hoje o acervo tem mais de 300 mil livros, incluindo aproximadamente 6.500 obras raras, editadas antes do século 19, além de outros mais de 200 mil exemplares de documentos como periódicos, teses, panfletos etc. O livro mais antigo é um exemplar de 1520 da “Divina Comédia” de Dante Alighieri. Há uma coleção de bíblias, entre as quais uma edição de 1584, poliglota, com textos em hebraico, grego, aramaico, entre outras línguas. Do século 20, há diversas obras autografadas por seus autores ilustres, como Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Monteiro Lobato –esses dois últimos, alunos da São Francisco. Um exemplar da década de 1530 das Ordenações Manuelinas, conjunto de leis de Portugal aplicável às suas colônias, é o primeiro livro do acervo jurídico da faculdade, hoje o maior da América Latina.

A comemoração do bicentenário terá festa reunindo grandes doadores do acervo. Além disso, a biblioteca deve passar por um processo de restauro e desenvolver um projeto de digitalização do acervo, além de ganhar um novo edifício, em um terreno na rua Riachuelo, aos fundos do prédio histórico da faculdade.

A nova sede terá as portas voltadas à rua, em um convite à população, e proporcionará uma melhor organização do acervo, que tem aproximadamente 20 mil livros, doações dos últimos anos, encaixotados por falta de espaço. O imóvel é vizinho do prédio Dalmo de Abreu Dallari, que já é anexo ao edifício histórico da faculdade, ligado por uma passarela sobre a rua Riachuelo.

O diretor da São Francisco, Celso Fernandes Campilongo, conta que a arquitetura será moderna, iluminada e irá valorizar a visualização do acervo pelo público. Haverá espaços confortáveis de convivência e salas de estudo, algo que falta no prédio histórico, explica o diretor, especialmente hoje em dia em que muitos estudantes, em especial cotistas que moram em bairros periféricos, passam boa parte do dia na faculdade, inclusive para realizar estágios a distância.

Uma das paredes laterais será de vidro, para mostrar a estrutura do outro imóvel vizinho, o primeiro prédio-garagem de São Paulo, dos anos 1950, que é tombado pelo Patrimônio Histórico –projetado pelo renomado arquiteto Rino Levi, foi pioneiro nos perfis de aço aparentes sobre os quais se apoiam lajes de concreto.

O 9º e último andar terá um auditório e um café com vista panorâmica para o centro histórico. O projeto é assinado pelo arquiteto Paulo Bruna, que foi estagiário de Rino Levi. A construção será, em parte, custeada por uma doação de R$ 16 milhões da JBS, além de R$ 17 milhões de um acordo de reparação aos cofres públicos que a CCR assinou com o Ministério Público em razão de doações irregulares em campanhas políticas anos atrás. Um montante de mais cerca de R$ 35 milhões deverá ser destinado pela própria USP.

Já a biblioteca antiga, também tombada, situa-se dentro do prédio da Faculdade de Direito, construído nos anos 1930 ao lado do convento dos franciscanos –em 1934, a USP seria inaugurada, integrando a São Francisco a outras escolas.

Projetadas pelo escritório do consagrado Ramos de Azevedo, as instalações da biblioteca são de sua segunda fase –na primeira, que durou mais de um século, os livros ficavam distribuídos em salas do convento de São Francisco.

O restauro da biblioteca antiga deve custar R$ 1,5 milhão, e envolve, entre outros serviços, descupinização, recuperação do mobiliário e renovação de instalações elétricas. Para o financiamento, a faculdade buscará o apoio de doadores.

São quatro andares de livros, aos quais se tem acesso por uma porta em um canto da sala de leitura da biblioteca. Atrás dessa porta, onde a entrada é restrita, perdem-se de vista estantes e mais estantes de ferros com livros.

Nos corredores, com o piso feito por estruturas vazadas de ferro e madeira, é possível visualizados todos os andares. Olhando para cima e para baixo, só se enxergam livros e mais livros antigos, com suas capas duras, de cores escuras e letras douradas nas lombadas. Um passeio por ali parece cena de filme.

A pesquisadora Maria Lucia Beffa, diretora da biblioteca, onde atua há 35 anos, conta que alunos de gerações anteriores, ao adentrar aquele ambiente, lembravam-se de “O Nome da Rosa”, de 1986, baseado no romance de Umberto Eco, ambientado em um mosteiro medieval onde há uma biblioteca misteriosa, um labirinto de corredores escuros que guardam livros raros, segredos e uma tensão entre a fé e a razão. Já os mais novos citam “Harry Potter” e a biblioteca de Hogwarts, essencial para desvendar grandes mistérios e fazer a magia acontecer.

Dos 200 anos de história dos corredores da São Francisco, tem-se, através de um janelão de vidro, uma visão panorâmica do terreno onde será a nova biblioteca, cujas obras já começaram e devem levar cerca de três anos. De lá, o professor titular da faculdade Maurício Zanoide de Moraes, coordenador do projeto de restauro da biblioteca, fala à reportagem dessa convivência entre passado e futuro.

Da arquitetura antiga que escondia livros à moderna que os exibe, o processo é de construção de conhecimento, respeito à tradição e busca por renovação, como prega a frase cravada na entrada das famosas arcadas do pátio da São Francisco: “Velha e Sempre Nova Academia”. A velha biblioteca e a velha academia surgiram após a Independência do Brasil, de 1822, quando o novo império queria formar uma elite intelectual e quadros políticos que reforçassem a autonomia do país.

Em um país escravocrata, um negro, José Antônio dos Reis, foi o primeiro bibliotecário e integrou a turma inaugural de direito da São Francisco, da qual se tornou o melhor aluno, agraciado com medalha. E, dois séculos depois, o sistema de cotas nas universidades finalmente torna um pouco menos branco esse espaço histórico da elite intelectual do velho e (nem) sempre novo Brasil.