SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Escombros varrem ruas e quarteirões. Paredes e postes são levados por todos os lados, e a água avança sem discriminar as casas, os carros e as pessoas que encontra pelo caminho. São imagens que poderiam estar em qualquer ficção distópica, mas dimensionam uma realidade que não cicatrizou suas feridas.

Quando soube da tragédia que tomava o Rio Grande do Sul, Bárbara Paz voltou às pressas para o Brasil. A artista reuniu seis profissionais, pouquíssimos equipamentos, e se lançou às enchentes que tornaram 2024 em ano fatídico para incontáveis famílias e brasileiros. Em meio aos alagamentos e destroços, eles passaram a buscar quem estivesse disposto a trocar perspectivas e falar de suas perdas.

Foi assim que chegaram à “Rua do Pescador, nº6”, espaço que nomeia o documentário dirigido por Paz e que estreia no Festival É Tudo Verdade. Localizada na ilha da Pintada —reconhecida como uma das mais afetadas pela catástrofe climática–, a rua os levou ao coração do filme e os apresentou a uma comunidade que precisava ser ouvida.

“Era como se um tsunami tivesse passado por ali. A ilha se divide entre pessoas muito ricas, donas de jet skis, casas grandes, de tudo um pouco, e famílias de pescadores, que vivem lá desde que nasceram e já testemunharam várias e várias enchentes. Nós encontramos avós, netos e filhos que decidiram abraçar nosso projeto”, diz a atriz.

Apesar da urgência, ela descreve um processo que buscou estar distante do melodrama e possíveis generalizações. Imune a narradores oniscientes ou contextualizações pedagógicas, a ideia era recortar a rigidez dos acontecimentos a partir da privacidade e experiências desses sobreviventes.

“Quantas tragédias aconteceram só em 2024, provocadas pelo aquecimento global, pela crise climática no mundo inteiro? O filme nos permitiu dar um zoom nesse vilarejo e explorar o que acontecia em um ponto específico do universo. Era como se eles estivessem suspensos no tempo, em uma fissura que se abriu para que pudessem falar, respirar e existir”, afirma a diretora.

Entre arquivos e gravações da equipe, o documentário contrapõe as forças da natureza à paciência dos obrigados a se adaptar a um novo normal. Poças d’água tomam o caminho de terra em que a câmera de Bruno Polidoro avança. Ela se afasta devagar, com a lente fixa para trás, e revela aos poucos o que restou.

Pessoas caminham por entre placas, móveis e amontoados de solo destruído. Trocam palavras e pegam alguns poucos objetos que sobraram no chão. O choro de uma criança ecoa pela estrada, mas não rompe a resistência que sucede à tempestade. Resta viver a calmaria antes que as chuvas definam a hora de voltar.

Gaúcha, Paz compara a tragédia à enchente de 1941, que deixou outros 70 mil desabrigados na região, e defende a importância dos documentos históricos. “Esse é o primeiro documentário sobre os eventos a ser lançado. Diante de situações como essa, e que irão perdurar por muito mais tempo, convido todos que puderem a fazer seus próprios registros, para que calamidades do tipo não se repitam e nunca sejam esquecidas.”

Da timidez de Renan, menino que aparece em uma cena pós-créditos, à assertividade de Vanusa, moradora do endereço-título que fala sobre a impossibilidade de buscar outra vida, é a montagem de Renato Vallone que alinha as personagens como fio condutor.

O montador conta que se uniu ao projeto depois dos materiais terem passado pelas mãos dos cineastas Cao Guimarães e Germano de Oliveira. Ele recebeu 60 horas de filmagens e as tentativas anteriores pareciam não funcionar. Com a confiança de Paz, seguiu totalmente outros caminhos criativos e passou a dividir o roteiro com a diretora.

Vallone cita cenas clássicas do cinema brasileiro, como a abertura de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, como inspiração para evidenciar sofrimentos antigos que persistem até hoje.

“Considero os primeiros enquadramentos do filme uma revisita ao cinema novo, porque se o movimento tinha como imagem emblemática a cabeça de um boi na terra seca do Nordeste, dessa vez ele surge flutuando sobre a água.”

Inserida em uma área de preservação permanente, a ilha da Pintada apresentou contradições que inspiraram o montador. Ao entrelaçar a rotina dos habitantes e transmissões de rádio que condenam tais presenças, ele reforça o espírito revolucionário dos que ainda estão ali.

“Procurei usar a montagem para mostrar pessoas que não têm nenhuma escolha. São pessoas de uma classe social em necessidade. Pescadores que desafiam a especulação de uma elite que escolheu estar ali, para fazer da região uma espécie de paraíso turístico e encher seus próprios bolsos.”

RUA DO PESCADOR, Nº6

– Onde Em São Paulo, sáb. (5), às 17h, na Cinemateca Brasileira; no Rio de Janeiro, qua. (9), às 20h30, no Estação Net Botafogo; qui. (10), às 17h, no Estação Net Rio

– Classificação 10 anos

– Produção Brasil, 2025

– Direção Bárbara Paz