SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não há uma noite, mas muitas noites. As horas depois do pôr do sol servem para passear e festejar, para se jogar no grande prazer da boemia madrugada adentro, para sonhar, para ter medo do escuro ou para esperar, angustiado, que o dia seguinte nasça, trazendo consigo a promessa de uma nova chance.

As possibilidades sem fim da noite —que, como diz o ditado, é uma criança— são abordadas na exposição recém-inaugurada na Pinacoteca do Estado. A mostra “Tecendo a Manhã” abre a programação de 2025 do museu paulistano, que este ano completa 120 anos, ocupando todas as sete salas do principal espaço expositivo da Pina Luz.

Por que a noite? Thierry Freitas, um dos organizadores da exposição, argumenta que o tema é universal e mais ou menos inédito. Afinal, quais outras mostras já se voltaram para isso? De todo modo, o apagar das luzes é o pano de fundo para reunir uma seleção representativa da arte brasileira do século 20 com quase 200 obras, entre pinturas, esculturas, gravuras, fotografias e um vídeo.

Esta sopa de suportes coloca lado a lado artistas do cânone —como Di Cavalvanti e Ismael Nery— com artistas populares. São pintores e escultores de fora dos grandes centros urbanos, em geral autodidatas, que não passaram por educação formal em arte nem por residências artísticas —ou mesmo cogitaram que seus trabalhos figurariam um dia num dos principais museu do Brasil e serviriam como objeto de especulação no mercado de arte.

É o caso do escultor Chico Tabibuia, um lenhador natural de Casimiro de Abreu, no Rio de Janeiro, que trabalhava com a madeira extraída da árvore tabebuia, de onde tirou seu nome. Figura central da mostra com várias esculturas numa espécie de jardim de monstros montado na sexta sala, ele exemplifica, com seus seres de pênis ereto e representações de Exú, o tipo de artista que a exposição buscou.

“É uma forma de recolocar artistas populares dentro de uma narrativa que não folcloriza esses artistas. Não tem no título da mostra ‘arte popular no Brasil’, porque isso seria manter um nicho”, diz Renato Menezes, o outro curador da exposição.

“A gente está interessado em inscrever esses artistas numa narrativa mais ampla, que não os mantêm reféns de uma abordagem primitiva. É repensar inclusive a ideia de popular”, acrescenta ele.

Intitulada “Tecendo a Manhã”, nome de um poema de João Cabral de Melo Neto que também é como se chama uma aquarela de Mô Toledo exibida na última sala, a exposição é didática. Cada uma das sete galerias têm um tema —”o cair da noite”, “boêmios e notívagos” etc.— em torno do qual giram as obras que ali são exibidas.

A primeira sala tem trabalhos que retratam o entardecer e as primeiras horas da noite, e a última obras sobre o amanhecer, de modo que no percurso passamos pela madrugada —com direito a pinturas representando os sonhos e os cabarés e botecos—, como se seguíssemos o percurso do relógio.

A primeira galeria é uma das melhores da mostra, pela qualidade das obras e por sintetizar a proposta da exposição. O tópico dela é como o chegar da energia elétrica em São Paulo no final do século 19 propiciou a socialização noturna, traduzido em trabalhos de períodos e estéticas diversas.

Há uma pintura muito conhecida de Valério Vieira, provavelmente dos anos 1910, que mostra o Theatro Municipal de São Paulo e seus arredores lotados de gente. Ela aparece ao lado de uma caixa de madeira branca de Cildo Meirelles, de 1982, na qual vemos, em um dos lados, o contorno de uma lâmpada no contraluz. Isto vem junto de duas fotografias em preto e branco, uma de Voltaire Fraga e outra de Benedito Junqueira, que retratam o centro da cidade iluminado.

Outras obras-primas da exposição são um autorretrato de Di Cavalcanti num bordel, em que ele posiciona os pinceis à frente da área íntima da mulher ilustrada, e uma pintura da lua, de Tomie Ohtake, pouco vista e que ocupa uma parede inteira. Por fim, há um dos primeiros trabalhos de Heitor dos Prazeres, de um rapaz negro dormindo e sonhando com a sua diva.

A Pinacoteca chega aos 120 anos como um dos principais museus do Brasil e um dos maiores complexos da América Latina dedicado às artes visuais. Seus três prédios —a Pina Luz, a Pina Estação e a Pina Contemporânea— receberam no ano passado mais de 810 mil visitantes, segundo a instituição, o que posiciona o museu como o mais visitado do país.

Para comparação, o midiático Masp, o Museu de Arte de São Paulo, teve cerca de 230 mil frequentadores a menos em 2024 em relação à Pinacoteca. O que ambas as instituições têm em comum é uma programação dedicada fortemente às pautas identitárias, com algumas poucas mostras que fogem ao tema, dominante no meio das artes visuais desde antes da pandemia.

Mas, curiosamente, as mostras de maior sucesso desde 2020 na Pinacoteca foram de artistas brancos. Basta lembrar da sensação que foi a exposição da dupla Osgêmeos, os maiores grafiteiros do país, da diva da arte pop da Argentina Marta Minujín, sempre cheia e com pais levando os filhos para interagirem com as obras, e também de Lygia Clark, no ano passado, em que finalmente o público pôde manusear reproduções de suas obras, o que era a intenção da artista desde o começo.

A Pinacoteca tem 12 mil obras em seu acervo, que compreendem o desenvolvimento da arte do Brasil do século 17 a 2025, sendo que mais de mil estão em exibição. É importante destacar também a série de mostras panorâmicas de artistas contemporâneos brasileiros empreendida no prédio da Pina Estação —nomes respeitados como Rosângela Rennó, Jarbas Lopes, Jonathas de Andrade e Renata Lucas já tiveram as suas carreiras repassadas em exposições de fôlego.

Mas há pontos que podem melhorar. O caminho de terra no parque da Luz que conecta os prédios da Pina Luz e da Pina Contemporânea carece de sinalização, e o café do museu, a cargo do restaurante Fitó, deixa muito a desejar. O expresso custa R$ 10, caro para um museu público e ainda mais caro do que na avenida Paulista, e o pão de queijo vem com textura de borracha, tipo comida de micro-ondas. Ainda bem que ninguém vai ao museu para lanchar.

TECENDO A MANHÃ: VIDA MODERNA E EXPERIÊNCIA NOTURNA NA ARTE DO BRASIL

– Quando Até 27 de julho; visitação de quarta a segunda, das 10h às 18h

– Onde Pina Luz – praça da Luz, 2, Bom Retiro, São Paulo

– Preço R$ 32; grátis aos sábados

– Link: https://pinacoteca.org.br/programacao/exposicoes/tecendo-a-manha-experiencia-noturna-na-arte-do-brasil/