SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A série “Adolescência”, da Netflix, chama a atenção ao retratar um jovem de 13 anos acusado de matar uma colega de turma. A produção aborda as comunidades de incels na internet -os celibatários involuntários que odeiam mulheres e lamentam o declínio da imagem do homem na sociedade.
Na vida real, as redes sociais estão infestadas dessas comunidades, com integrantes cada vez mais jovens, que, no Brasil, são também racistas e antipatriotas -diferentemente de comunidades nos Estados Unidos, de onde elas foram importadas, que emanam o nacionalismo.
A reportagem acompanhou fóruns de um site dedicado a incels -cada post pode ter diversas conversas. Neles, integrantes chamam o Brasil de “Bostil” e criticam pardos, apelidados de “pardola”. Também ensinam como estuprar mulheres e enaltecem o fato de serem incels verdadeiros: “Nunca nem abracei uma fêmea”, diz um deles.
Em conversas, há quem se recuse a falar a língua nativa e escreva em inglês, como: “Não me lembre que vivo nesta porcaria de país”.
Mulheres são comumente chamadas de “depósito” ou definidas como seres que “não passam de pedaços de carne, sem alma, seres sem a mínima capacidade criativa”.
Eles ainda afirmam que, como elas os privaram do sexo, é um direito dos homens excluí-las de todo o resto. Também torcem pelo dia em que androides terão “corpo feminino e útero artificial” para que a população de mulheres morra de fome. O feminismo é visto como inimigo que “assola a dignidade do país”.
O nível de raiva entre os usuários é elevado em comparação com aqueles de outras redes sociais, aponta um estudo internacional que coletou dados de janeiro a março de 2022 de fóruns de incels. Publicada no final de 2024, a pesquisa foi realizada por Melissa de Roos, Laura Veldhuizen-Ochodnicanová e Alexis Hanna, da Universidade Erasmus de Roterdã (Holanda) e da Universidade de Nevada-Reno (Estados Unidos).
Os pesquisadores descrevem que os usuários, em geral, ingressam nesses fóruns relatando algum distúrbio emocional, o que é descrito em seus posts. Além da raiva, desde o início demonstram familiaridade com o vocabulário utilizado pelo grupo.
Também apontam o risco de usuários mais vulneráveis serem capturados por ideologias extremistas por meio dos algoritmos da internet, com a vitimização interpessoal servindo como precursora para uma radicalização de suas ideologias.
Professor de filosofia e doutor em educação, Renato Levin-Borges aponta um crescimento de um público mais jovem nesses fóruns –adolescentes de 13 ou 14 anos que ainda nem passaram pela experiência de rejeição que caracteriza o incel– e observa que grande parte dele viveu os primeiros anos da puberdade durante a pandemia, período em que o sentimento de isolamento foi predominante.
“Há um sentimento de frustração muito precoce com a vida e com os relacionamentos”, diz o professor. “As comunidades violentas são uma forma de se sentirem pertencentes a algo.”
Pesquisas recentes mostram que as gerações mais novas têm um pensamento mais conservador em relação aos direitos femininos. Um levantamento realizado pela Ipsos, divulgado no Dia Internacional da Mulher, mostra que 59% dos homens da geração Z (nascidos de 1995 a 2010, no entendimento mais comum) dizem acreditar que os direitos iguais para as mulheres já “foram longe o suficiente”.
As taxas caem numericamente nas gerações mais velhas: 57% entre os homens millennials (de 1981 a 1996), 54% entre os da geração X (1965 a 1980) e 48% entre os baby boomers (1946 e 1964).
A pesquisa, que foi realizada em 31 países com amostra de 24 mil entrevistados, sendo mil no Brasil, também mostra que as gerações mais jovens (Z e millennials) são as que mais declaram (28 e 25%, respectivamente) que homens que ficam em casa para cuidar de seus filhos são “menos homens”. Entre os mais velhos (X e boomers), cai para 18% e 12% a parcela que diz concordar com a afirmação.
Nas comunidades online, um dos principais discursos é o do chamado masculinismo -uma teoria da conspiração segundo a qual os homens de hoje são prejudicados por um suposto sistema que privilegia mulheres.
Esses conteúdos são disseminados principalmente pelos chamados edits, vídeos com músicas de fundo que ridicularizam mulheres.
Posts ironizam ameaças a meninas com quem se relacionam, com frases como “0 chance que eu te traia, mas 1.000 chances de se você me trair eu ligar para sua mamãe falando o que você faz na internet”.
Um conceito popular nesses círculos é a “regra 80/20”, mencionada na série. A teoria sugere que 80% das mulheres se interessam apenas pelos 20% dos homens considerados mais atraentes -os chamados “alfas” ou “sigmas”.
Por outro lado, eles acreditam que os homens menos bonitos, mas que conseguem relacionamentos, são os “betas”, usados pelas mulheres em troca de benefícios.
Além da misoginia, questões raciais são presentes nas comunidades. “Eles desenvolvem um auto-ódio muito forte”, diz Leandro Louro, pesquisador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “Eles menosprezam a ideia de ser miscigenado, como se isso fosse um obstáculo ao ideal da masculinidade perfeita”, explica.
Outra diferença com as panelas americanas é o ódio ao Brasil. “Há uma negação profunda do Brasil e uma defesa da ‘balcanização’, divisão do país em guerra civil”, afirma Louro.
Pensamentos extremistas são comuns. Segundo o pesquisador, muitos defendem ideias aceleracionistas (que pregam o colapso da sociedade) e neonazistas. “É um ódio à humanidade”, define.
O psiquiatra Gustavo Estanislau orienta que pais abram espaço para conversar com os filhos sobre o consumo nas redes. Se houver sinais de perigo, como foco excessivo nas redes sociais ou mudanças de comportamento, é importante procurar tratamento psicológico.
**Converse**
Dialogue sobre benefícios e riscos da rede e como navegar com mais segurança
**Participe**
Assista junto e debata o conteúdo que está sendo consumido
**Desconfie**
Não é por que algo está catalogado como infantil que é próprio para esse público
**Monitore**
No caso das crianças mais novas, considere a instalação de aplicativos para bloqueio de conteúdo e tempo de tela
**Limite**
A Sociedade Brasileira de Pediatria orienta limitar o tempo de tela
**Instigue**
Promova a autorreflexão e o senso crítico sobre as atividades online
**Oriente**
Na página internetsegura.br, há cartilhas para as diferentes idades que ensinam sobre o uso seguro da internet
**Aprenda**
Há um curso online gratuito sobre como ajudar os filhos a usar a internet com segurança
**Promova a informação**
Também há cursos gratuitos para professores sobre comportamento responsável no ambiente digital