SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Prefeitura de Santos estima que 1 milhão de pessoas ocuparam os sete quilômetros da orla da praia para o show de fogos na festa de Ano-Novo. Uma delas foi Mariela Frey, 45.
Quando o relógio chegou à meia-noite, as luzes, o barulho de rojões levados por populares e os gritos foram o gatilho para ela sentir os sintomas de estresse pós-traumático.
Voltou para casa para fazer a única coisa que a acalma e aplaca a angústia: cozinhar cookies.
Fazer os doces que aprendeu nos Estados Unidos era uma distração. Quando saíam do forno, os oferecia para vizinhos e amigos. Com o tempo, resolveu abrir uma loja, a The Cookie Monster, no bairro do Gonzaga. Neste mês, começa a vender a versão canina: o The Cookie Monster Pet.
“Acho que vai dar muito certo. As pessoas fazem tudo pelo seu pet”, afirma.
Mariela percebeu que, quando a onda de estresse começa a vir, precisa deslocar a concentração para outro lugar. Quando morava na Califórnia, pintava quadros, mas considera que no Brasil o material de pintura é muito caro. Mais fácil cozinhar cookies.
O conselho veio da psiquiatria do Exército americano. Mariela é aposentada pelas Forças Armadas do país. Fez parte dos marines (corpo de fuzileiros navais), esteve no Afeganistão durante a guerra (iniciada em 2001) e foi integrante de equipes de resgate por terra e helicópteros em diferentes conflitos.
Sua história de vida é pouco usual. Tão incomum quanto sair de Rondônia, onde nasceu, se destacar na natação, ir para a guerra por outra pátria e virar empreendedora no litoral de São Paulo.
“O marine está sempre preparado para a guerra. No Afeganistão, eram 24 horas por dia de bombas, hospital de guerra, gente chegando sem braço, sem perna, aquelas coisas que a gente geralmente vê em filmes. O resgate na Ucrânia era algo dramático. O cheiro da morte é algo que vou carregar comigo pelo resto da vida”, diz.
Ela nunca viu estar no Exército como uma questão ideológica. Era trabalho, uma maneira de ganhar dinheiro. Exatamente como é vender cookies em Santos hoje em dia.
Esta é a resposta que dá todas as vezes que escuta a pergunta sobre, em caso de guerra entre Brasil e Estados Unidos, por quem lutaria.
Ela já havia morado na cidade paulista na juventude. Treinou com a equipe de natação da Unisanta (Universidade Santa Cecília), uma das principais do Brasil. A viagem para a América do Norte aconteceu porque, em janeiro de 1998, o avô lhe prometeu um computador se ela viajasse para um curso de dez semanas nos EUA e aprendesse inglês.
Mariela ficou muito mais tempo do que isso. Matriculou-se no curso de marketing da University of California San Diego. Entrou para o time de natação. Como sua família é boa parte composta de militares ou policiais, se sentiu atraída pelo convite para visitar a Estação Naval e Aérea de Lemore, no mesmo estado.
Foi onde conheceu o marido, que fazia parte da Força Aérea, em 2000. No ano seguinte, deu à luz à filha Emily, hoje com 24 anos e também na vida militar. Ele morreu de câncer em 2002. Não é um assunto que ela gosta de mencionar.
“Eu era muito nova [22 anos], viúva, com uma filha recém-nascida. Perdi muito peso, estava deprimida. Precisava acordar”, disse.
Pensou em algo que a desafiasse porque, senão, desistiria. “Um desafio físico e mental”, resume. Entrou no teste para marines, conhecido pelo rigor e dificuldade. Foram 13 semanas de treinamento, antes de ser aprovada. Tentou duas vezes a vaga na equipe do batalhão de resgates por terra e ar depois disso. Unidade composta por apenas 3% de mulheres.
“Sou tinhosa. Queria entrar”, define.
O desgaste físico e mental do trabalho, aos poucos, começou a cobrar a conta. Na volta do Afeganistão, o estresse pós-traumático começou a se manifestar. Ela começou a treinar novatos no time de resgate. Em um voo de helicóptero em que era instrutora, a recruta não fechou direito a trava de segurança. Mariela despencou no mar da África do Sul. Sofreu lesões, nenhuma grave. Mas foi a gota d’água. Pediu para se aposentar.
“Eu lembro que nos segundos da queda, passou pela minha cabeça minha família lendo a notícia no Brasil: ‘brasileira cai no mar da África do Sul e é comida por tubarões.'”
“Tenho saudade porque amo o que fazia. Vejo helicópteros em voo e dá saudade. Mas a vida é muito curta. Perdi amigos em 20 e poucos anos de serviço militar. Considero que parei no topo. Tenho aposentadoria vitalícia, psicólogo à disposição onde estiver. Meus filhos podem ir para qualquer universidade dos Estados Unidos. Não vou me queixar.”
Além de Emily, ela é mãe de Kate (19 anos), Kieran (16), Christopher (11) e Lilly (8).
A venda de cookies foi sucesso que não imaginava. Em um domingo, já chegou a vender 350 unidades. Para quem trabalha sozinha, é muito. Fechou a loja no final do ano passado, mas vai reabri-la no final deste mês. Também lançará o cookie para pets.
Mariela tenta conciliar tudo isso com outro empreendimento: abrir uma instituição que dê apoio a militares brasileiros que vão para a reserva e ficam sem opções profissionais.
“Decidi usar minha veia empreendedora para ajudar nessa transição e criar essa ponte entre empregadores e essa pessoas porque, no Brasil, quem sai das Forças Armadas só tem como opção empresas de seguranças.”
Produzir e vender cookies para gente, para pets, cuidar de filhos e criar uma entidade que ajude ex-militares parece muito para uma pessoa só. Mas quanto mais ela estiver ocupada, focada e em atividades profissionais, menos os gatilhos do estresse pós-traumático são acionados.