SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para o paraibano Chico César, literatura e música sempre dividiram o mesmo espaço, como dois itens essenciais presentes na mesma cesta básica. Com apenas oito anos, ele já trabalhava na loja de discos e de livros Lunik, na Paraíba, como vendedor. Enquanto vendia, ouvia Milton Nascimento, Gilberto Gil, Luiz Gonzaga e Jorge Ben Jor. Mas também lia “Menino de Engenho”, de José Lins do Rêgo, “O Menino do Dedo Verde”, de Maurice Druon, ou coletâneas de contos da editora Ática.
É esse encontro de linguagens que fizeram de Chico César um “cantautor”, como se define, um artista que compõe e interpreta as próprias músicas. Há 30 anos, com seu primeiro álbum, “Aos Vivos”, o artista apresentava essa faceta para o Brasil, e foi exitoso.
“Ninguém acreditava que um disco de um autor lançado naquele momento, voz e violão, ao vivo, solo, funcionaria mercadologicamente. Mas o mercado da música pode nos surpreender. Felizmente”, afirma o cantor.
O artista agora faz um “mergulho radical” no disco em três shows que chegam a São Paulo, no Sesc Pinheiros, entre os dias 28 e 30 de março. Para revisitar o repertório, ele se apresenta junto ao grupo Nova Orquestra. A série de apresentações já passou pelo Rio de Janeiro.
“Aos Vivos” abriga dois dos maiores sucessos da carreira de Chico César, “À Primeira Vista” e “Mama África”, canções marcadas pela criação ou jogo de palavras característicos da sua obra. O refrão de “À Primeira Vista”, por exemplo, diz “amarrara dzaia soiê/ dzaia dzaia/ aí iii iinga dunrã”. “Mama África”, por sua vez, afirma que “deve ser legal/ ser negão no Senegal”.
“Acho o uso da palavra na música popular brasileira muito sofisticado, e isso me influencia muito. Tenho um certo zelo, um carinho com a palavra. E fui percebendo que esse jogo de palavras, daquelas que existiam com as que eu ia inventando, é muito presente na literatura brasileira também.”
Como exemplo, o artista lembra Guimarães Rosa -escritor mineiro marcado pela linguagem singular de suas obras- que começa “Grande Sertão: Veredas” com a palavra “nonada”, um neologismo para “não, não é nada”.
“Depois, artistas africanos me explicaram que o nome que dão para isso é iogurte, como o laticínio mesmo, um processo de transformação da palavra”, conta.
Num outro trecho da canção “À Primeira Vista”, Chico César diz “quando ouvi Salif Keita, dancei”. O músico do Mali é uma das maiores influências do artista, assim como o nigeriano Fela Kuti, o senegalês Youssou NDour e o congolês Ray Lema. Foi ouvindo eles, mas também os brasileiros Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Naná Vasconcelos, Milton Nascimento, Luiz Melodia e Itamar Assumpção, que ele compreendeu o seu lugar na diáspora negra.
“Quando saí do sertão da Paraíba para João Pessoa, me senti mais sertanejo. Porque o outro é que faz você ver como você é diferente, né? Quando cheguei em São Paulo, me senti mais preto e mais nordestino, porque as pessoas me viam assim. E essa coisa me aproximou ainda mais da música africana também”, afirma Chico César.
Essa busca levou o artista a conhecer inúmeros países africanos e até a fazer uma parceria com Salif Keita em “SobreHumano”, música do álbum “Vestido de Amor”, de 2022. O cantor também conheceu o Senegal de “Mama África” para uma apresentação, visita que o fez repensar a letra da canção.
“As elites africanas, assim como as da América Latina, assumem um ar de conformidade com a atitude predatória do imperialismo europeu”, afirma Chico César. “A crueldade está no mesmo patamar, pois praticamente escravizam seus pares, seus irmãos, que estão em condições precárias de vida, de trabalho. Isso acendeu uma crítica em mim. A partir daí, passei a cantar menos deve ser legal ser negão no Senegal.”
O cantor nunca escondeu sua posição política e o fato de ser uma pessoa de esquerda alinhada aos movimentos sociais, especialmente ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.
“Sou filho de um trabalhador rural sem terra, que trabalhava de meeiro em terra alheia, e de uma mulher também camponesa, lavadora de roupa. Sou preto, nascido num estado periférico, numa cidade periférica, na zona rural dessa cidade periférica, que é Catolé do Rocha. Meu irmão foi preso pela ditadura. Eu só poderia fazer uma música que fosse cidadã.”
Na canção “Reis do Agronegócio”, do disco “Estado de Poesia”, de dez anos atrás, faz crítica firme aos que chama de “produtores de alimentos com veneno” e “cínicos”.
“Não me sinto apoiando o MST. Me sinto parte dele. Só que eu não sou o cara que está lá o tempo todo debaixo da lona preta. Sou o cara que ocupa um outro lugar, de visibilidade, mas, sempre que o MST me chamar, eu estou pronto, eu vou.”
A respeito do cenário de expansão da extrema direita no Brasil e no mundo, Chico César responsabiliza os conglomerados de tecnologia. “Tínhamos a ilusão de que, com a internet, nós íamos conseguir nos comunicar com muito mais liberdade do que antes, quando a comunicação era dominada, vamos dizer, por sete famílias no Brasil.”
Para ele, no entanto, essa previsão não se concretizou. “Da forma como as redes sociais se estruturam hoje, estão aí mais para bitolar do que para libertar.”
O artista, no entanto, não é pessimista sobre os rumos da esquerda. “Sinto que ainda há bom senso. Há ilhas de bom senso na sociedade brasileira que precisam se interconectar, para essas ilhas se sentirem arquipélagos, esses arquipélagos se refazerem como continentes, porque os pretos, os pobres, as mulheres, os indígenas, os trabalhadores, eles são a maioria. É preciso que essa maioria se aglutine e mostre força.”
30 ANOS DE AOS VIVOS
Quando Sex. (28) e sáb. (29), às 21h; dom. (30), às 18h
Onde Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros
Preço Ingressos esgotados
Classificação 12 anos