SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na entrada do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, há um arco com uma inscrição em latim que significa “se quer paz, prepare-se para guerra” [no original, “si vis pacem, para bellum”]. Em agosto de 2024, a escritora e roteirista Eugenia Zerbini, 71, entrou pela segunda vez na base militar para tomar um brunch na companhia de sua filha Eleonora, 31, em uma das cafeterias do local.

A primeira vez em que Eugenia cruzou aquele arco havia sido há 60 anos, em 1964, na companhia da mãe, Therezinha Godoy Zerbini, que terá a vida retratada em filme.

Naquela ocasião, o motivo foi uma visita ao general Euryale de Jesus Zerbini, pai de Eugenia e marido de Therezinha, que estava detido no forte por se opor ao golpe militar de 1º de abril daquele ano. Por sua posição, ele teve seus direitos políticos cassados e foi colocado na reserva.

“O que a senhora veio fazer aqui?”, indagou o então coronel César Montagna à mãe, lembra Eugenia. “E, com uma voz muito calma, respondeu: ‘eu vim visitar o meu marido’. Ela me contou depois que já tinha virado o anel no dedo e, caso ele fizesse alguma gracinha, daria um tapa na cara dele”, diz.

Assistente social, advogada e pioneira na luta pela liberdade dos presos políticos, Therezinha fundou, em 1975, o Movimento Feminino pela Anistia. Antes disso, em 1970, ela própria havia sido presa pelo regime militar por ajudar a organização do 30º Congresso de UNE, realizado no sítio de um amigo da família em Ibiúna, interior de São Paulo.

Agora, dez anos depois de sua morte, ela terá sua vida contada pela cineasta Susanna Lira em um documentário baseado no roteiro escrito por Eugenia.

PRISÃO E ANISTIA

A família morava no bairro do Pacaembu, na capital paulista, perto do Convento Santo Alberto Magno, de frades dominicanos. Entre eles, frei Tito de Alencar Lima, que pediu ajuda do casal para encontrar uma sede para o encontro estudantil, em outubro de 1968.

O evento foi descoberto pela repressão, e os participantes, presos.

Pelo seu envolvimento, Therezinha também seria presa em 11 de fevereiro de 1970, condenada com base na Lei de Segurança Nacional. Eugenia afirma que, após ser liberada, cerca de um ano depois, a mãe passou a viver como uma “fera na jaula” até voltar a se mobilizar contra a ditadura.

“Conspirava um pouco aqui e um pouco ali. Ela dizia que seu coração estava cheio de ódio pelo que fizeram com o frei Tito”, diz. Vítima de intensa tortura na prisão, o religioso desenvolveu transtornos psicológicos e cometeu suicídio em 1974, aos 28 anos.

Em 1975, Therezinha leu a notícia de que a ONU (Organização das Nações Unidas) havia declarado o Ano Internacional da Mulher e teve a ideia de reunir assinaturas pela Lei da Anistia, fundando o MFPA (Movimento Feminino pela Anistia). No primeiro ano, segundo as atas das reuniões, foram cerca de 12 mil signatários.

“Só de mulheres, apartidário, para unir a família brasileira. Minha mãe foi muito hábil. Ela dizia que era um movimento feminino para romper com o ‘dique da censura e do preconceito’. Nesse ponto, acho que foi muito sóbria”, afirma.

“Hoje em dia tem que tomar um cuidado com essa palavra [anistia], não é? Mudou completamente o discurso”, diz Eugenia, em referência à tentativa da base do ex-presidente Jair Bolsonaro de reverter as condenações dos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Therezinha não se identificava como feminista, mas, para Eugenia, a vida da sua mãe contradiz qualquer declaração nesse sentido.

“Esposa de um general, 20 anos mais velho e divorciado, que continuou trabalhando. Você vê a independência dela na forma de pensar, de se expressar no mundo. Uma feminista avant la lettre” [à frente do seu tempo], diz.

THEREZINHA HOJE

“Minha avó foi o pai que eu nunca tive”, diz a neta Eleonora. “Ela ensinava a gente a ter coragem. Não tinha opção de ser preguiçoso perto dela”, afirma.

Eugenia também lembra dessa postura de Therezinha diante da vida e define a mãe como uma ‘fazedora’: “exemplo de determinação, de coragem e de esperança. Ela sempre dizia que a esperança é uma virtude revolucionária”, diz.

A filha também vê uma postura um pouco centralizadora em Therezinha, cuja ausência durante o período de resistência foi sentida por ela. Entretanto, pondera: “não foi por isso que ela entrou para a história”.

Susanna Lira, que adquiriu os direitos de um roteiro escrito por Eugenia sobre a mãe, afirma que essa imagem de liderança é lembrada pelas companheiras da “torre das donzelas”, nome do pavilhão feminino do presídio Tiradentes, retratado em um filme homônimo de Susanna e onde Therezinha cumpriu parte da pena.

“Em todas as pesquisas que fiz, o nome dela aparecia. Dilma Rousseff, que ficou presa com ela, sempre ressaltou sua generosidade e sua presença no front de resistência à ditadura”, afirma a cineasta. O filme está em fase de pré-produção, e Susanna diz querer retratar a história de maneira “extremamente inovadora”.