CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – Curitiba já abrigou uma produção intensa de escrita dramática, mas não se furta de retornar ao seu cânone literário para semear a cena teatral. Na celebração do centenário de Dalton Trevisan, o Teatro de Comédia do Paraná, o TCP, estreia no Festival de Curitiba “Daqui Ninguém Sai”, composição cênica de contos do vampiro curitibano, morto em dezembro passado.

Em paralelo, o festival recebe “Cabaré Haikai”, peça musical criada a partir da vida e obra de Paulo Leminski, que estreou na capital paranaense no ano passado, comemorando 80 anos de nascimento do autor, sob a direção de Roddrigo Fôrnos.

Duas décadas mais jovem, Leminski despediu-se bem antes, em 1989, mas foi revisitado em espetáculos memoráveis como “Descartes com Lentes”, da companhia brasileira de teatro. Trevisan recebeu adaptações de Marcelo Marchioro, a última delas, “Pico na Veia”, também pelo TCP, e foi montado por João Luiz Fiani no Teatro Lala Schneider.

Tinham estilos de escrita e presenças públicas díspares. Leminski, um agitador, Trevisan, o recluso. A verve é o que os aproxima, embora a Leminski aprouvesse provocar o contista explicitamente.

Essa acidez perpassa “Cabaré Haikai”. As canções e escritos do autor de “Catatau” justapõem-se formando uma espécie de tratado sobre a arte segundo Leminski, em defesa da inutilidade.

Dos “Ensaios e Anseios Crípticos”, entrevistas, um conto, “Wanka”, e haikais, emergem as apostas na poesia como última trincheira entre o dirigismo ideológico e o mercantil, no encontro do erudito com o pop, e no Paraná como estado de vanguarda.

Kauê Persona, Michele Bittencourt, Renata Bruel e Ane Adade atuam e cantam acompanhados por um quinteto de músicos que transita do rock ao orquestral. A música domina a cena como meio melodioso que Leminski achou para ampliar a escuta de seus jogos de sentidos e sonoridades. Atraía-lhe infiltrar o difícil no fácil, a poesia na MPB.

Para Fôrnos, interessa mostrar quem é Leminski. “Ele gostava de se sentar com as pessoas e ser o centro das atenções. Sempre falando, com uma urgência de colocar tudo o que pensava e sentia para fora. Tinha essa necessidade de provocar e de mostrar que era o melhor”, diz o diretor. Uma inquietação criativa aliada ao rigor poético, que hoje faz falta.

A procura por novas plateias também modelou a montagem de “Daqui Ninguém Sai”. A peça começou a ser gestada quando Trevisan estava vivo e se alterou no processo. “A proposta sempre foi que a gente fizesse um espetáculo popular, no melhor sentido da palavra”, diz a diretora Nena Inoue, que atuou na histórica montagem de “O Vampiro e a Polaquinha” em 1992, conduzida por Ademar Guerra.

A dramaturgia de “Daqui Ninguém Sai” ficou nas mãos do potiguar Henrique Fontes, repetindo a parceria de “Sobrevivente”, de 2023, em que Inoue está em cena. Com os veteranos Simone Spoladore e Sidy Correa e jovens talentos como Trava da Fronteira, Madu Forti e Zeca Sales, a peça reúne doze artistas vindos de audições públicas. Um formato desafiador, que foi incorporado ao espetáculo.

O público acompanha a busca por uma forma de encenar a escrita controversa de Trevisan hoje, em uma espécie de percurso invertido, que parte da arte final ao rascunho. No início, os contos ganham forma musicada, em jogos de vozes que valorizam as palavras e os ritmos dos escritos. É quando a poesia do exímio narrador mais se expande.

Logo, um musical épico vai se configurando, com a feitura da cena exposta ao público. Depois, as temáticas dos contos sobressaem na representação de cenas ilustrativas. Homens que batem, mulheres que apanham. Quando não vítimas, prostitutas. Uma paisagem humana de tipos comuns, com sotaques carregados, cuja complexidade está na ambiguidade entre o amor e o ódio, o desejo e a dor.

Então, irrompe a incontornável questão sobre a atualidade dos contos num tempo de combate aos feminicídios. Trevisan escrevia sobre o que via, não idealizações. Há quem o considere um cronista desapegado de julgamentos morais sobre seus personagens. Para isso, seria necessária uma isenção que nem a visão nem a linguagem ofertam.

Leminski chamava de “daltônicos” os escritores curitibanos inspirados pelo veterano. Se Drummond escreveu que cada um vê somente meia verdade, segundo sua própria miopia, as cores de um cronista também dizem de seu modo singular de observar a vida.

“Daqui Ninguém Sai” assume, enfim, a forma de uma peça-ensaio, em que os atores mostram proposições para a representação dos contos, entremeadas por comentários em que suas posições particulares frente à obra pouco aparecem.

“É uma celebração ao Dalton, mas é uma celebração ao teatro. A gente teve 25 edições de textos, foi uma construção diária. E o que eu queria falar é do teatro, que é o que sei fazer”, diz Inoue. Assim, o espetáculo pretende aproximar um escritor centenário de uma geração de não iniciados, para a qual o autor permanece insondável.

CABARÉ HAIKAI

Quando Festival de Curitiba: ter. (25), às 21h; e qua. (26), às 18h30

Onde Teatro Zé Maria – r. Treze de Maio, 655, Curitiba

Preço R$ 42,50

Elenco Ane Adade, Michele Bittencourt, Renata Bruel

Direção Roddrigo Fôrnos

DAQUI NINGUÉM SAI

Quando Festival de Curitiba: qua. (26) e qui. (27), às 20h30

Onde Guairinha – r. Quinze de Novembro, 971, Curitiba

Preço Grátis

Elenco Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywer, Laís Cristina

Direção Nena Inoue