SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há 11,5 mil anos, o planeta Terra deixava de enfrentar um período glacial. Com temperaturas mais altas, os humanos começaram a povoar todos os cantos. O cenário, no entanto, não era de estabilidade completa do clima. Eventos climáticos extremos e abruptos causavam derretimentos de geleiras, quebras de lagos glaciais, atividades vulcânicas, períodos de seca e de umidade, de frio e de calor alternados, que afetaram a vida de comunidades antigas que viveram no Brasil.

Um artigo de pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) aponta que muitos destes povos optaram por abandonar seus territórios de origem em vez de tentar se adaptar às mudanças climáticas. O trabalho foi publicado em fevereiro na PLoS ONE.

É importante destacar, porém, que as alterações no clima a que os cientistas se referem, de milhares de anos atrás, não são como as que estão acontecendo no século 21.

“As mudanças climáticas de hoje são promovidas pelas nossas economias, causadas por ações humanas, enquanto os impactos enfrentadas pelas populações durante o Holoceno não eram causados pelas alterações que elas faziam diretamente no sistema climático planetário, mas sim resultado de fenômenos naturais”, explica Leonardo Troiano, arqueólogo sem relação com a pesquisa recém-publicada e coordenador do Centro Nacional de Arqueologia do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

Entre as causas das mudanças no clima que afetaram os povos antigos estão mudanças nos padrões de correntes dos oceanos, atividades vulcânicas, derretimentos de geleiras, mudanças de órbita do planeta, entre outros fenômenos. Na pesquisa, os cientistas classificam como mudanças climáticas rápidas (RCC, na sigla em inglês) aquelas que obrigaram os brasileiros a se deslocar.

“São alterações perceptíveis dentro da escala de tempo humana, tão abruptas e rápidas que as pessoas estavam sentindo, não é em uma escala geológica”, afirma o arqueólogo Astolfo Araujo, líder do estudo, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e coordenador do Levoc (Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas em Evolução, Cultura e Meio Ambiente). “A imprevisibilidade do clima já afetava diretamente os humanos, mesmo aqueles que não dependiam da agricultura.”

No início dos anos 2000, pesquisadores do campo da arqueologia começaram a desenhar a hipótese de que o abandono de território em algumas regiões do Brasil decorria de um período de seca bastante prolongado. A ausência de vestígios humanos nestas regiões, que compreendem parte do Centro-Oeste, do Sudeste (especialmente Minas Gerais), parte da Bahia e da Amazônia, foi chamada de “hiato do arcaico” entre os especialistas.

Há quase uma década, Araújo publicou, com outros pesquisadores do Levoc, um artigo com dados paleoambientais que apontavam eventos de seca como a principal causa das imigrações. O avanço das pesquisas e da tecnologia, no entanto, permitiu a descoberta de dados mais recentes que sugerem uma explicação mais detalhada sobre as mudanças no clima entre 8.000 e 4.000 anos atrás que podem ter influenciado as andanças de povos antigos.

Para conduzir a pesquisa, foram usados bancos de dados de sítios arqueológicos criados pelos próprios autores nas últimas décadas de estudos, além de informações do primeiro mapa interativo de sítios arqueológicos indígenas do estado de São Paulo. O grupo também realizou estudos com dados paleoambientais, com indicadores como presença de partículas de carbono e pólen de mandioca e milho. Para organizar as informações, o mapa do Brasil foi dividido em oito regiões.

Em algumas regiões, parece que todo mundo ‘some’ ao mesmo tempo, enquanto, em outras, é ao contrário, mas isso não quer dizer que são exatamente as mesmas pessoas saindo de um lugar e indo para outro

arqueólogo

Foi feito, então, um cruzamento entre os sinais de ocupação humana e as informações paleoambientais. A ideia era não só investigar a influência das mudanças climáticas rápidas, mas também compreender os padrões de migração das populações ao longo do tempo e do espaço.

No artigo, os pesquisadores mencionam o sítio de Santarém, no Pará, onde fica a caverna da Pedra Pintada, amplamente estudada. Ali, há fortes indícios de ocupação humana, mas eles desaparecem entre 11,5 mil e 9.000 anos atrás e reaparecem entre 6.500 e 4.500 anos. No mesmo intervalo de desocupação, Oriximiná e Altamira, relativamente próximos dos locais de migração, têm sinais de presença humana.

“Em algumas regiões, parece que todo mundo ‘some’ ao mesmo tempo, enquanto, em outras, é ao contrário, mas isso não quer dizer que são exatamente as mesmas pessoas saindo de um lugar e indo para outro”, diz Araujo. “Dá a impressão de ser uma dança das cadeiras.”

O pesquisador aponta, porém, que as mudanças de território e adaptação às mudanças no clima não significam necessariamente mudanças de práticas culturais dos povos antigos. “Existe uma visão muito arraigada na arqueologia, que vem da antropologia, de que as sociedades têm que mudar suas práticas culturais porque o ambiente mudou, mas eu diria que elas mudam de lugar para continuar mantendo suas práticas culturais, elas são mais importantes do que a manutenção do território”, avalia o arqueólogo.

Outras possíveis rotas de migração foram identificadas pelos cientistas em regiões do Pantanal e do cerrado, além de Minas Gerais, que apresenta dados arqueológicos bastante robustos, segundo os autores.

Para analisar as informações, a equipe utilizou ferramentas e equipamentos que não eram tão desenvolvidos quando começou o debate em torno do hiato do arcaico. “Com o passar do tempo, os profissionais se capacitaram em análises espaciais, que nos permitiu fazer a correlação entre as datações [paleoambientais] e os sítios [arqueológicos] e até existia há 20 anos, mas tinha um uso muito discreto na arqueologia, e em softwares que trabalham com grandes volumes de dados”, aponta Letícia Correa, pós-doutoranda da EACH (Escola de Artes, Ciências e Humanidades) da USP e coautora do artigo da PLoS.

Outras observações importantes do estudo são relativas às mudanças na paisagem das regiões brasileiras ao longo do tempo. “Há períodos em que a floresta amazônica recua e o cerrado e a caatinga se estendem, o litoral é uma área sempre muito suscetível às mudanças climáticas, com o aumento e descida do nível do mar, que impacta diretamente populações estabelecidas em regiões costeiras”, diz Troiano.

Para o arqueólogo do Iphan, o trabalho também abre a discussão sobre a influência da ação humana sobre as paisagens que, no senso comum, eram “intocadas” até a chegada dos colonizadores. “Essa é uma noção muito equivocada porque, ao longo de milênios, as populações nativas aprenderam a conviver com os ecossistemas nos quais elas se estabeleceram”, afirma Troiano. “Sabemos que há interferência humana na composição da floresta amazônica e na caatinga, e há ocupação de pelo menos 12 mil anos no sertão, as pessoas aprenderam a conviver com a seca e fazer o manejo.”

Na opinião da bióloga Mercedes Okumura, coautora do artigo, coordenadora do LEEH (Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos), do Instituto de Biociências da USP, o contexto atual de crise do clima influencia e incentiva pesquisadores a buscar compreender mudanças climáticas do passado para pensar em soluções para o futuro. “Não devemos nos considerar tão diferentes dos humanos do passado. No fundo, somos todos Homo sapiens, esquecemos que somos bichos, então temos que pensar nas respostas que nossos ancestrais encontraram para sobreviver.”