SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A revelação de que nomes centrais da política externa americana criaram um “grupo de zap” para discutir com o mínimo de segurança planos de ataque ao Iêmen e ainda incluíram sem querer um jornalista na lista ilumina diversos aspectos do governo Donald Trump.

Primeiro, a recorrência, entre altas autoridades americanas, da falta de noção no trato de informações sigilosas. Já foi assim com os famosos e-mails da então secretária de Estado Hillary Clinton, ironicamente um dos itens prediletos de Trump na campanha em que derrotou a democrata em 2016.

Não que o presidente tivesse a consciência tranquila: ele mesmo estocou pilhas de documentos secretos até no banheiro de seu resort na Flórida após deixar o primeiro mandato, em 2021. Tanto Trump como Hillary se safaram ao fim, com o republicano escapando de uma provável condenação judicial.

O Signal, aplicativo usado para a criação do grupo pelo conselheiro de Segurança Nacional Mike Waltz, é um dos prediletos de políticos e jornalistas para a troca de informações por teoricamente vender um grau de criptografia mais avançado do que os competidores.

Isso dito, ele não é imune a monitoramento com programas dos reais profissionais do ramo, de Tel Aviv a Moscou, passando por Pequim e Washington. Qualquer ator do jogo sabe disso, a começar por Waltz e os secretários Pete Hegseth (Defesa) e Marco Rubio (Estado), com o agravante de que os houthis são apoiados pelo Irã, com contatos na Rússia e na China.

Que políticos discutam questões importantes de forma coloquial, isso não deveria assustar ninguém —ou a todos, dependendo do ponto de vista.

Isso dito, impressiona a superficialidade com que as autoridades debatem o emprego de armas como os mísseis Tomahawk usados contra os houthis, com efeitos humanos devastadores e alto custo ao erário, na casa de R$ 10 milhões o disparo.

É eloquente o desprezo, de resto tornado política de Estado sob Trump, com que os aliados europeus são tratados nas conversas reveladas pelo editor-chefe da revista The Atlantic.

Dado momento, o vice-presidente J.D. Vance deixa claro sua dúvida em agir para salvaguardar o comércio numa área de interesse da Europa, em nome de “um país aleatório que não lutou uma guerra em 30 ou 40 anos”.

Novamente, Vance revela ignorância por baixo do verniz de ideólogo e herdeiro presumido de Trump. O Reino Unido lutou ao lado dos EUA na malfadada invasão do Iraque em 2003, e todos os membros da Otan integraram a força liderada por Washington na igualmente fracassada ocupação do Afeganistão.

As mensagens também trazem um interessante viés de contradição interna do trumpismo, quando Vance abre o jogo sobre o impacto da decisão de atacar os houthis, inconsistente com todo o discurso de desengajamento americano das “guerras inúteis” do presidente.

Por fim, mais como nota de rodapé, é interessante notar a semelhança no tom triunfalista e superficial das conversas com o que ocorre no bolsonarismo, a versão tropicalizada do trumpismo.

Basta comparar as mensagens com as diversas conversas de WhatsApp reveladas no curso da investigação da trama golpista de 2022, ou em qualquer troca ordinária que jornalistas tenham com políticos aliados de Jair Bolsonaro (PL).

Até os emojis nacionalistas estão presentes. Waltz, por exemplo, comemora o primeiro bombardeio aos houthis com um punho cerrado, a bandeira americana e uma chama. Qualquer semelhança com as bandeirinhas brasileiras de conversas com bolsonaristas não é mera coincidência.

Tudo isso configura matéria-prima para roteiristas de uma versão adulta e empoderada da série “Adolescência”, da Netflix, inclusive a reação inicial dos envolvidos —Trump fingindo desconhecimento, Hegseth partido para a desqualificação do repórter.

O episódio colocará à prova novamente o sistema de freios e contrapesos da democracia americana, dado que em situações normais ele provocaria demissões imediatas só pela irresponsabilidade no trato de dados confidenciais sensíveis.