WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – De 2010 a 2020, multidões foram às ruas em países como Tunísia, Egito, Ucrânia e Brasil para exigir mudanças. Foi a década em que houve mais manifestações na história, afirma o jornalista americano Vincent Bevins, que analisa o período no livro “A Década da Revolução Perdida”.
Como antecipa o título, o autor sugere que os protestos não conquistaram seus objetivos. Em muitos casos, resultaram no oposto do que almejavam. No Egito, por exemplo, os manifestantes da praça Tahrir trocaram uma ditadura por outra. Na Síria, deflagraram uma guerra civil.
Já no Brasil os protestos de 2013, convocados contra o aumento da tarifa do ônibus, foram seguidos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff e depois pela eleição de Jair Bolsonaro, segundo essa narrativa.
O livro saiu primeiro nos Estados Unidos, em 2023, e chega agora ao Brasil pela Boitempo na tradução de Carlos Eduardo Matos. Bevins conta que publicar o texto por aqui era um de seus objetivos quando o escreveu.
Bevins viveu em São Paulo como correspondente do Los Angeles Times e manteve um blog em inglês na Folha. Acompanhou de perto as manifestações de 2013 e seus desdobramentos, uma experiência que fez com que quisesse entender a dinâmica dos movimentos sociais brasileiros.
“Comecei a prestar atenção em protestos bastante parecidos no mundo”, diz. Decidiu amarrar tudo em um ensaio de história global, de maneira que conseguisse encaixar o Brasil em um contexto mais amplo unindo a avenida Paulista a outros locais associados a manifestações, como o parque Gezi, em Istambul, e a praça da Independência, em Kiev. Foram mais de 200 entrevistas em 12 países.
Bevins explica no livro que esses protestos foram em parte o resultado de uma dinâmica mundial de insatisfação com a política. Os laços entre cidadãos e seus governos tinham se fragilizado. As redes sociais aceleraram a comunicação e a organização desses movimentos. Uma pessoa podia acordar, ler uma mensagem no celular e se dirigir para o espaço público algo impensável em décadas anteriores.
As tecnologias de informação também ajudaram a popularizar táticas de protesto, fazendo com que pessoas em lugares como Tunísia e Hong Kong adotassem as mesmas estratégias. É o que Bevins chama de repertório. “Por causa da reconfiguração tecnológica dos anos 2010, ficou muito fácil tomar o sucesso aparente de um país e aplicá-lo em outro, e havia um enorme otimismo em relação a essas manifestações.”
O exemplo da Primavera Árabe mostra isso. Protestos derrubaram o ditador da Tunísia em 2011 e foram em seguida replicados no Egito, na Líbia e no Iêmen, onde autocratas também caíram. Táticas parecidas foram reproduzidas na Turquia, na Ucrânia e no Brasil, sob a expectativa de que o mundo vivesse uma época de revoluções populares.
Em poucos anos, porém, ficou claro que aqueles movimentos estavam tendo consequências inesperadas e indesejadas. As ditaduras retornaram. Guerras civis foram travadas. A direita populista ganhou terreno no mundo. A Ucrânia foi invadida pela Rússia.
“Não há uma correlação entre a razão pela qual as pessoas foram às ruas e o que aconteceu em seguida”, diz Bevins. Os protestos criaram um vácuo político, mas seus líderes não souberam preenchê-lo. “Na maioria dos casos, outros atores políticos tiraram vantagem das oportunidades criadas pelas manifestações.”
Para piorar, os atores que se aproveitaram do vazio foram, muitas vezes, os rivais dos movimentos sociais. Isso aconteceu, em parte, porque os líderes dos protestos não tinham demandas claras nem uma mensagem unificada. Eram, afinal, movimentos horizontais e às vezes espontâneos.
Tampouco imaginavam que teriam tanto sucesso. “Se você conversa com os organizadores, eles explicam que não esperavam que as coisas explodissem dessa maneira.”
Os manifestantes que tomaram a praça Tahrir no Egito em 2011, por exemplo, não imaginavam que fossem derrubar um violento regime depois de décadas no poder então não sabiam o que fazer em seguida.
Apesar de ser o trabalho de um jornalista, baseado em entrevistas e reportagens, “A Década da Revolução Perdida” também dialoga com a produção acadêmica.
Bevins estudou as teorias das ciências políticas e sociais e cita bastante, por exemplo, as ideias do sociólogo americano Charles Tilly. “Queria que a história que eu estava contando estivesse inserida nos marcos estabelecidos pelos pesquisadores”, diz.
O autor aparece também como personagem no livro, costurando as impressões que colheu na cobertura dos protestos, em especial no Brasil. Faz, nisso, uma crítica à imprensa.
Segundo ele, jornalistas tiveram um papel central na construção de narrativas sobre as manifestações, informando a opinião pública e as reações dos governos, mas falharam ao aderir a explicações rápidas e superficiais, facilitando a imposição de interpretações que favoreciam os atores mais poderosos. “Os jornalistas receberam uma missão histórica e, em muitos casos, fracassaram”, diz.
A DÉCADA DA REVOLUÇÃO PERDIDA
– Preço R$ 93 (344 págs.)
– Autoria Vincent Bevins
– Editora Boitempo
– Tradução Carlos Eduardo Matos