SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma lei sancionada pelo presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, que prevê desapropriação de terras para diminuir desigualdades, segundo o governo, vem aumentando tensões raciais três décadas após o fim do apartheid (1948-1994), regime de segregação que persistiu no país durante quase meio século.
A nova legislação é objeto de desinformação e alvo de ataques feitos por grupos oposicionistas e até por Donald Trump, que levou a cabo uma série de medidas retaliatórias e disparou uma crise diplomática entre os Estados Unidos e a nação africana.
A lei atualiza texto de 1975 e reconhece a desapropriação como um ato legítimo para dar aos terrenos funções públicas. Ponto controverso é a possibilidade da não compensação, apenas em casos avaliados como excepcionais e sem acordo com o proprietário da terra, ainda segundo o governo.
Trump, Elon Musk seu braço direito nascido na África do Sul e associações que atuam em favor dos direitos dos africâneres, o principal grupo de descendentes brancos no país africano, apegam-se a esse ponto, afirmando que a nova medida é racista, uma vez que os proprietários brancos seriam visados.
O argumento tem relação com processos históricos. O apartheid terminou há 30 anos, mas mantém o legado: a África do Sul é o país mais desigual do mundo, de acordo com o índice de Gini, que mede o grau de concentração de renda. E a discrepância é evidente na distribuição de terra, ponto considerado chave no regime de segregação.
Uma auditoria sobre a situação fundiária do país feita em 2017, a mais recente e ainda hoje utilizada pelo governo, constatou que a minoria branca possuía 72% das fazendas e propriedades agrícolas individuais, enquanto a população negra tinha apenas 4%. Com efeito, fica depreendido que o primeiro grupo será mais impactado do que o segundo pela medida governamental.
Dados do último censo sobre raça, de 2022, são inversamente proporcionais, entretanto. Os sul-africanos brancos representavam pouco mais de 7% da população, enquanto os negros eram maioria absoluta: 81%.
Os números explicam a enorme relevância que a redistribuição de terras tem no debate público sul-africano. O tema é tido como representativo de perdas materiais antes e durante a era do apartheid.
Autoridades enquadram a reforma agrária como um meio de atenuar as desigualdades no país. Nos 30 anos em que o Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson Mandela, está no poder após o fim do apartheid, alguma restituição de terras ocorreu, mas críticos apontam lentidão no processo.
Quase um ano depois de sofrer um revés histórico ao perder a maioria absoluta no Parlamento pela primeira vez em décadas, a legenda governista busca agora acelerar a redistribuição da terra.
William Gumede, professor de Governança na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e autor de diversos livros sobre Mandela e o CNA, vê um quê de populismo na reforma recém-anunciada, entretanto. Segundo ele, a medida é um “gatilho para o caos” em um país ainda com divisões claras e problemas socioeconômicos, incluindo desemprego alto (32,9 % em 2024) e casos de corrupção no governo.
“Se um país não preserva os direitos de propriedade, ele perde credibilidade e não conseguirá obter empréstimos ou investimentos para criar empregos. E a própria população negra será prejudicada”, diz ele, que é negro.
A nova legislação, sancionada em janeiro, já vem sendo contestada inclusive judicialmente. A Aliança Democrática, a segunda maior força no Parlamento, entrou com uma ação para barrar a lei.
Outro partido da oposição, a Frente da Liberdade, enviou nota à reportagem mencionando casos de terras que estariam sendo ocupadas de forma ilegal, sem qualquer ação da polícia. Ambas as legendas são lideradas por pessoas brancas.
“Grilagens de terras já estão acontecendo, e o dispositivo da lei sobre ‘compensação zero’, juntamente com as declarações populistas irresponsáveis do CNA e de outros partidos sobre a terra, criam um ambiente em que violações em larga escala dos direitos de propriedade podem ocorrer”, diz a nota.
O governo sul-africano afirma que a legislação vem sendo deturpada para criar pânico. As terras seriam apreendidas sem compensação apenas em casos raros, incluindo abandono ou se o proprietário usar o terreno como forma de especulação. Diz também que nenhuma medida do tipo ocorreu, ao menos por ora.
Ao criticar a lei, o presidente Trump chegou a falar que terras haviam sido confiscadas, embora não haja registros de tais atos. Ele ainda cortou todo o financiamento à nação africana e expulsou o embaixador em Washington devido ao que chama de “violação massiva” dos direitos das pessoas brancas, ignorando entretanto o histórico de discriminação contra negros em razão do apartheid.
O republicano, cuja principal bandeira política é o combate à imigração irregular, criou também um programa para acolher agricultores africâneres como refugiados nos EUA.
Mais do que desinformação, as críticas de Trump fazem parte de sua “política externa coercitiva”, afirma Lucas Leite, professor de relações internacionais da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) e coordenador do Observatório do Continente Africano. “Com essas pressões e chantagens, Trump busca alinhamento com a política externa de seu país”, diz.
A nação africana tem adotado posicionamentos contrários em relação aos interesses de Trump. O mais evidente é a denúncia apresentada na Corte Internacional de Justiça de que Israel estaria cometendo um genocídio na Faixa de Gaza Tel Aviv é o maior aliado de Washington no Oriente Médio.
Ao dar pitacos sobre a lei implementada na África do Sul, Trump também acena ao eleitorado interno. Uma das principais bandeiras do governo republicano é o combate a iniciativas DEI (diversidade, equidade e inclusão).
De acordo com o Freedom Charter, um documento elaborado durante a luta antiapartheid e considerado a fundação para a Constituição atual, a terra deve “pertencer a todos”. E a nova lei é um passo para diminuir desigualdades, diz Elizabeth Sidiropoulos, diretora do Instituto Sul-Africano de Relações Internacionais, um dos principais think tanks do continente. “[A lei] é sobre justiça. É para corrigir erros históricos”, diz.