SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Othon Bastos, vencedor do Prêmio Shell de Teatro 2025, não sabia que Fernanda Montenegro estava na plateia do espetáculo “Não Me Entrego, Não!”, em junho do ano passado, no Rio, quando ouviu um comentário vindo do público. “É verdade”, ela disse ao ouvir o amigo afirmar que “São Bernardo”, de Leon Hirszman, é um dos filmes mais importantes da trajetória dele.

A voz inconfundível provocou um sorriso em Bastos, no palco. Depois, vieram as lágrimas. Os dois se encontraram no final da peça e a atriz de 95 anos o abraçou aos prantos, emocionada com o monólogo, um sucesso carioca agora em cartaz no Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis, em São Paulo.

“São quase cem anos de uma vida intensa, de sobrevivência artística”, ela celebrou, falando das experiências de ambos, em conversa registrada em um vídeo que viralizou.

A mesma Fernanda perguntou ao amigo se é possível ser feliz sem fazer o que se gosta. Para Bastos, a resposta é não. Prova disso é que ele, aos 91, estrelou temporada de dez meses no Rio e, depois de São Paulo, está com viagens marcadas para outros estados -incluindo a Bahia, onde nasceu e conheceu nomes como Caetano Veloso e Glauber Rocha, então jovens no início das carreiras artísticas.

“O que adoro fazer é estar em cena. No teatro, você está diretamente ligado ao público, a reação é imediata. Cada sessão é uma estreia, porque o público é diferente”, diz.

As histórias vividas nos palcos e no cinema são a base de “Não Me Entrego, Não!”, com texto e direção de Flávio Marinho. A TV fica de fora. “Gosto de fazer, mas não tenho paixão pela televisão”, explica o ator, que lista apenas três trabalhos preferidos na telinha, apesar das 80 produções de que já participou: Antônio Pereira, na novela “Os Imigrantes” (1981-1982, Band), Júlio Abílio de Lemos, em “Éramos Seis” (1994, SBT) e Silviano, em “Império” (2014-2015, Globo).

No teatro e no cinema, ele perdeu as contas -são mais de 60 peças e quase uma centena de filmes, interpretando diversos tipos em fases diferentes da história do Brasil. Um deles, o Corisco de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), um marco do cinema novo, fez Bastos temer a repetição. Ele passou quatro anos sem filmar por não aceitar papéis de cangaceiros ou bandidos.

“Nunca mais eu fiz um cangaceiro na minha vida”, ressalta.

No entanto, a força do filme é tamanha que ressoa até hoje. É de Corisco a frase “não me entrego, não” que dá nome ao espetáculo atual.

A convivência com Glauber Rocha, “um vulcão prestes a explodir”, é uma das histórias saborosas contadas no monólogo. O cineasta baiano abordou Bastos e, impetuoso, disse que precisava dele para as filmagens, após a desistência de Adriano Lisboa.

Integrante da Sociedade Teatro dos Novos, em Salvador, o ator estava envolvido com a criação do Teatro Vila Velha, onde ensaiava a peça “Eles Não Usam Black-Tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, e não poderia atender o amigo cineasta.

“Ele chegou ao cúmulo de dizer que compraria o meu passe. Eu virei jogador de futebol. É como se estivesse me alugando por um determinado tempo”, diverte-se ao recordar a fúria criativa glauberiana.

Passe “negociado”, o ator entrou de corpo e alma no que define como uma “grande experiência filmada”. Sugeriu a narração brechtiana usada por seu personagem, uma revolução na atuação para o cinema.

“Ele, um menino de 24 anos, com um roteiro maravilhoso na mão, aceitou a sugestão de um cara que havia recém-chegado, que nem era do filme, nem havia participado das reuniões”.

“Não Me Entrego, Não!” é o primeiro solo na carreira de sete décadas do ator. No início da montagem, ele levou a Marinho uma sacola com 600 páginas de anotações escritas ao longo da vida. E fez um pedido: deixar de fora as histórias amargas.

Queria um espetáculo alegre. No palco, ri de si mesmo o tempo todo. Inclusive dos esquecimentos. Durante os ensaios, percebeu que o volume de texto era muito grande e sugeriu ao diretor a ajuda da Alexa, a assistente virtual da Amazon.

A ideia foi amadurecida, descartada e Bastos ganhou então uma companheira de cena de carne e osso, a artista Juliana Medella. Ela interage com o protagonista e funciona como uma memória de fatos, nomes e datas que nem sempre estão na ponta da língua do veterano. “Um encontro lindo”, afirma Medella.

O sucesso do espetáculo é uma surpresa para Bastos, artista avesso às biografias e aos documentários sobre si mesmo. Além dos aplausos, o alcance público foi percebido em uma conversa casual na entrada do Shopping da Gávea, na zona sul do Rio. Uma mulher o abordou e disse: “Cada um tem que procurar o bem que esse espetáculo faz a si próprio”.

“Para mim foi a coisa mais linda. Então ela seguiu o caminho dela e eu o meu”, diz.

Nascido em Tucano, no sertão baiano, aos 6 anos de idade ele pediu para morar com uma tia em uma pensão no Catete, bairro carioca que fervilhava na década de 1940. Começou a fazer teatro na escola e chegou a ouvir de uma professora que não seria bem-sucedido, após optar por uma interpretação naturalista em um desafio na sala de aula.

Foi uma profecia às avessas, como mostra a lista gigante de trabalhos realizados a partir de 1950.

“O acaso é importantíssimo na minha vida. O acaso me ajudou muito. As coisas foram acontecendo”, resume.

Também foi em sala de aula que atendeu a um apelo do economista e boêmio Ronald Russel Wallace de Chevalier, o Roniquito, e substituiu Walter Clark, futuro poderoso da TV Globo, em uma encenação. Os três eram colegas de classe.

Em uma das casualidades da vida, Bastos encontrou o diretor Fernando Peixoto, ligado ao Teatro Oficina, em um elevador e foi convidado para o elenco de “Pequenos Burgueses”. No teatro de José Celso Martinez Correa e Renato Borghi encenou também “Galileu Galilei”, “Na Selva das Cidades” e “O Rei da Vela”.

Na semana da estreia na capital paulista, Bastos gravou um depoimento na sede do Oficina, no Bixiga, e se emocionou com o retorno a um espaço que conheceu nos primórdios. Ele afirma que Zé Celso era genial, mas, sim, ficou constrangido ao ouvir do diretor que teria de ficar nu em uma das encenações. Resolveu a questão pedindo um tapa-sexo.

Em São Paulo, ele viveu anos de glória ao liderar uma companha que montou, entre outros espetáculos, “Um Grito Parado no Ar”, texto de Guarnieri vinculado ao teatro de resistência, com encenação de Peixoto. Bastos tinha a seu lado, no grupo, a atriz Martha Overbeck, 76, com que é casado há 59 anos e tem um filho e um neto.

Além dos filmes de Glauber Rocha, com quem fez também “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, e de “São Bernardo”, onde interpretou densamente o latifundiário Paulo Honório, o ator cita como fundamental em seu caminho o trabalho em “O Paciente”, que retrata Tancredo Neves enfrentando os problemas de saúde que impediram a posse na Presidência da República.

Em “Central do Brasil” e “Bicho de Sete Cabeças”, o ator afirma que foi “coadjuvante de luxo” de Fernanda Montenegro e Rodrigo Santoro, respectivamente.

Não parece ser uma afirmação magoada e sim realista. Bastos é um artista que questiona as ilusões da fama e aposta na dedicação ao ofício escolhido.

“Na minha carreira, eu fui um selecionador. Selecionei o que quis. Não me deixei encantar pelo sucesso. Nietzsche diz que o sucesso é o maior mentiroso que existe”.

Em uma apresentação recente para estudantes de teatro, ele encontrou uma plateia entusiasmada e curiosa sobre as estratégias de sobrevivência na vida artística.

A resposta é a persistência no palco, onde pretende comemorar o aniversário de 92 anos, em maio, em terras baianas.

O ator prega a alegria de viver e adota o bom humor para não se entregar às expressões carrancudas que, vez ou outra, cruzam o seu caminho.

NÃO ME ENTREGO, NÃO!

Quando Até 21 de abril. De quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h

Onde Teatro Raul Cortez

Preço R$ 70 (inteira); R$ 35 (meia-entrada); R$ 21 (credencial plena do Sesc)

Autoria Flavio Marinho

Elenco Othon Bastos

Direção Flavio Marinho