RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A expansão territorial do crime organizado no Rio de Janeiro e a migração de criminosos para o estado têm sido atribuídas, por setores da segurança pública, à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, também conhecida como ADPF das Favelas cujo julgamento deve ser retomado na próxima quarta-feira (26) no STF (Supremo Tribunal Federal).
Para o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, não há evidências concretas que sustentem essas afirmações.
Lima afirma que o domínio territorial por grupos criminosos é um fenômeno nacional, presente não apenas no Rio de Janeiro, mas em outras regiões como na Amazônia e na Baixada Santista, em São Paulo.
“No fundo, esse argumento de que a ADPF facilita o crescimento do crime é completamente desconectado das evidências”, afirma.
Já um relatório da Polícia Civil do Rio aponta, por exemplo, que o Complexo de Israel teria se expandido para 36 ruas que antes não tinham registro de tráfico após a arguição. O Comando Vermelho também tenta formar um cinturão do crime na capital, com expansão para a zona oeste. Segundo a corporação, essas seriam consequências da ADPF, que busca padronizar protocolos para a realização de operações policiais.
Lima diz que a expansão territorial é uma estratégia do crime organizado para manter o controle sobre serviços e sobre a população, independentemente da existência da ADPF. “É da própria lógica do crime organizado exercer controle territorial para explorar serviços e deixar a população refém dos interesses privados desses grupos. No Ceará, recentemente, saíram notícias de que o crime estaria cortando o sinal de operadoras de internet e obrigando os moradores a assinarem seus ‘gatonets'”, disse.
A Polícia Civil, no entanto, afirma que foi por meio da migração de criminosos para o Rio que houve a troca de conhecimento técnico e de fornecedores para a expansão do crime em outros estados.
Nesta quinta-feira (20), após um copiloto ser baleado na cabeça durante um voo em operação policial, a corporação voltou a fazer críticas à medida. “O que antes era um equipamento que causava temor aos criminosos, com efeito inibitório e dissuasório, hoje é alvo desses bandidos por meio de armamentos de guerra. Desde o início da ADPF, houve um aumento de mais de 300% nos ataques às aeronaves policiais, o que demonstra que tal decisão passou a ser um fator estimulante e encorajador de ataques aos helicópteros”.
Sobre a ADPF 635, o pesquisador reforça que sua existência não significa impedir ações policiais, mas sim garantir que elas sejam fiscalizadas e conduzidas de maneira adequada. “O conceito de ‘estado de coisas inconstitucional’ reconhece que, quando os poderes executivo e legislativo falham em solucionar problemas que violam direitos fundamentais, o Judiciário pode intervir para fiscalizar e corrigir essas políticas públicas”, disse.
Em nota, o Ministério Público do Rio de Janeiro afirmou que “considera necessário superar a exigência de excepcionalidade [uma das exigências da ADPF para a realização de operações]. A instituição aguarda o julgamento de quarta-feira e, após a decisão, cumprirá as determinações da Corte. O MPRJ tem se empenhado para exercer o controle externo da atividade policial de forma cada vez mais efetiva”.
OPERAÇÕES AUMENTARAM, LETALIDADE DIMINUIU
De acordo com números que serão divulgados nesta sexta-feira (21) pela ONG Redes da Maré, em 2024 foram registrados 42 dias de operações policiais no complexo da zona norte carioca, número seis vezes maior que o de operações realizadas em 2021, mesmo com a ADPF em vigor. Segundo o estudo, isso derrubaria a tese de que a decisão do STF impediria a realização de operações policiais.
Segundo os dados, em 2022 houve 22 operações e 26 mortes na Maré; em 2023, 34 operações e oito mortes; e, em 2024, 42 operações e 20 mortes. Assim, apesar do aumento no número de operações, a letalidade por operação variou, sendo mais alta em 2022 e menor em 2023.
Já segundo as informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, após a ADPF 635 as mortes em operações policiais no Rio caíram de 1.814 em 2019 para 699 em 2024 uma redução de mais de 61,5%.
Ainda de acordo com a Redes da Maré, em 2024, no complexo que abriga 140 mil moradores foram registradas invasões a 93 casas durante as ações, número que era de apenas seis em 2016.
Em 3 de setembro do ano passado, segundo a ONG, houve registros de invasão a 29 residências, acompanhadas de outras violações de direitos, como ameaças, agressões físicas e até tortura. Há ainda recortes de gênero e raça: de 2016 a 2024, 67% das vítimas de invasões foram mulheres, enquanto 72% eram pessoas pretas ou pardas.
“A ADPF das Favelas nunca pretendeu impedir o trabalho dos policiais em favelas. Ao contrário, o que se pede com essa ação é o respeito ao que está previsto na Constituição Brasileira quando se trata da atuação das forças policiais. Algo que já acontece em outras regiões das cidades, onde o trabalho da polícia é feito com certa legalidade”, disse Eliana Sousa Silva, diretora da ONG.
“A ADPF 635 chama atenção para a necessidade de se criar regras e protocolos que orientem o enfrentamento ao crime sem causar violações de direitos, como o número expressivo de mortes de moradores de favelas”, acrescentou.
A ONG, que atua como “amicus curiae” (parte interessada) no julgamento, levará desenhos feitos por crianças da Maré aos ministros do STF. Neles, pedem paz.
ENTENDA A AÇÃO
A ADPF é movida pelo PSB e corre no Supremo desde 2019. O partido argumenta que a política de segurança pública no Rio, “em vez de buscar prevenir mortes e conflitos armados, incentiva a letalidade da atuação dos órgãos policiais”.
Com base nisso, desde 2020, o STF concedeu decisões que ordenavam mudanças na estrutura das forças de segurança e em normas e procedimentos para uso da força policial, como a suspensão de grande parte das operações em favelas durante a pandemia de Covid-19.