SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na chegada a seus 40 anos, o Ministério da Cultura se vê encurralado por crises. Problemas que já fizeram muitos aniversários, sob outras gestões, estão se agravando -caso da demora na análise das prestações de contas de projetos financiados com a Lei Rouanet- e conflitos mais recentes -como a lentidão na regulação do streaming- levam a pasta, hoje comandada por Margareth Menezes, a ser questionada tanto pela classe artística quanto pelo Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União.

Um relatório do TCU que analisou as contas públicas do governo Lula em 2023, obtido pela reportagem agora, aponta que existe um “quadro grave” relacionado à falta de avaliação da prestação de contas de quem busca patrocínio cultural via Lei Rouanet.

Menezes atribui as dificuldades que enfrenta à desestruturação da pasta durante o governo de Jair Bolsonaro, que reduziu o Ministério da Cultura a uma secretaria e desidratou mecanismos como a lei de incentivo. Ela acrescenta que seu objetivo é eliminar, até o ano que vem, as prestações de contas não analisadas pela pasta.

A fiscalização dessas contas é um problema que órgãos de controle como o TCU apontam desde o início dos anos 2000, mas o passivo só cresce -apenas relativo à Rouanet, houve um aumento de 14,9% na quantidade de avaliações pendentes em um ano, do fim de 2022 para o fim de 2023, segundo o TCU. Ao todo, até o fim do período analisado pelo relatório, existiam 26.086 processos sem uma análise conclusiva.

Os dados foram compilados num relatório pelo cientista político Manoel de Souza Neto, do Observatório da Cultura. Para ele, a pasta precisa de uma reforma institucional. “O MinC não tem capacidade de sanar o passivo bilionário nem consegue definir políticas, liderança, planos, metas ou cumprir sua palavra com os órgãos de controle. Está num apagão com relação a aplicação dos recursos. Não se pode comprovar como foram gastos, nem sua eficácia para as políticas públicas.”

A demora na análise das prestações de contas é uma das faces mais evidentes do déficit de funcionários do MinC –de 2014 a 2023, houve uma queda de 36,6%, cifra acima da redução vista no quadro geral de profissionais do setor público federal, que foi de 7,8% no mesmo período.

A queda está relacionada, entre outros fatores, à desvalorização do trabalhador da Cultura, diz Ruth Vaz Costa, servidora do Instituto Brasileiro de Museus, ligado ao Ministério da Cultura, e integrante da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal.

Um servidor da Cultura em topo de carreira recebe R$ 9.728, enquanto em carreiras como analista em infraestrutura do DNIT, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, por exemplo, os salários chegam a R$ 21.886.

“Nesses 40 anos, as políticas públicas de cultura ganharam ainda mais complexidade, o que não se espelhou numa carreira mais complexa que demonstrasse o tipo de qualificação necessária para a atuação no MinC”, ela diz. “Não adianta recriar o ministério para ficar brigando para manter o mínimo de estrutura de trabalho.”

O orçamento empenhado na área da cultura oscila ano a ano. No ano passado, o MinC teve R$ 2,78 bilhões, valor inferior aos R$ 2,99 bilhões de 2023, ano que marcou sua recriação, mas superior ao R$ 1,68 bilhão empenhado em 2022 e ao R$ 1,69 bilhão de 2021, anos em que o setor ficou relegado a uma secretaria especial, sob Bolsonaro.

Noutro relatório, sobre a Lei Paulo Gustavo e a Aldir Blanc 2, que compreende o período de junho de 2023 a março de 2024, o TCU diz ter encontrado dificuldade de assegurar o “nexo de causalidade entre o recurso público gasto e o produto executado”, ou seja, não comprovou que o dinheiro recebido no âmbito dessas leis foi efetivamente usado nos seus respectivos projetos culturais.

Outro mecanismo que virou alvo de questionamento é a Política Nacional dos Comitês de Cultura, a PNCC, que oferece, entre outras atividades, formação para comunidades locais. Na semana passada, o Ministério da Cultura bloqueou recursos do comitê do Amazonas depois que Anne Moura, secretária nacional de Mulheres do Partido dos Trabalhadores, foi acusada de tentar usar essa verba para promover sua campanha eleitoral para vereadora em Manaus, no ano passado.

Moura nega a acusação. “[São] declarações distorcidas com a única finalidade de macular a minha imagem perante a opinião pública”, diz.

Mas o episódio gerou uma série de representações de parlamentares, a maioria ligados à direita, pedindo a investigação do PNCC, o que levou o TCU a abrir processos para analisar o suposto uso indevido de recursos do programa.

Todas essas crises reverberam entre a classe artística. Produtores culturais que celebraram a recriação do ministério depois de Jair Bolsonaro agora se dizem frustrados com a gestão atual. Um deles é Matheus Peçanha, integrante da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro, a API, entidade que reúne 196 produtoras pelo país.

“Há meses tentamos nos reunir com o MinC e a Ancine para apresentar estudos e recomendações, mas nem sequer tivemos os emails respondidos”, ele diz, acrescentando que o governo está injetando dinheiro no setor, mas sem uma estratégia ou planejamento.

A partir de 2023, por exemplo, o governo depositou R$ 3 bilhões a estados e municípios por meio da Lei Aldir Blanc, que também financia projetos audiovisuais. No entanto, até o final de novembro do ano passado, menos de 10% da verba havia sido utilizada –R$ 208 milhões. O governo então determinou que novas verbas só seriam liberadas quando os estados e municípios usassem o dinheiro já depositado.

A falta de uso, no entanto, não é só culpa dos entes federativos, diz Peçanha. “Muitos estados e pequenos municípios não têm experiência com políticas audiovisuais, o que exige um processo de formação muito mais cuidadoso”, ele afirma. “Quando a sua estratégia se limita a distribuir recurso sem planejar quais expectativas de resultado, a efetividade da política é esvaziada.”

Outro problema, ele acrescenta, é a demora na regulação do streaming, pauta considerada importante para proteger o mercado nacional do avanço das grandes plataformas estrangeiras, como Netflix, Max e Prime Video, da Amazon.

Um projeto de lei prevê que 6% da receita anual bruta dessas empresas vá para a Condecine, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional. Os recursos dessa contribuição compõem o Fundo Setorial do Audiovisual, o chamado FSA, criado para desenvolver e financiar a cadeia produtiva do setor. O PL, porém, está travado no Congresso.

Segundo Margareth Menezes, a demora também está relacionada ao desmonte de sua pasta por Bolsonaro. Ela, no entanto, afirma que está promovendo articulações nas casas legislativas para acelerar a aprovação do PL.

Peçanha, por sua vez, considera que a responsabilidade de encampar a regulação não deveria ser apenas do MinC, mas também de outras áreas, como Fazenda, Casa Civil e a própria Presidência. “É claro que gostamos de ver um vídeo do presidente comemorando a vitória no Oscar de ‘Ainda Estou Aqui’, mas vamos gostar mais ainda de o ver defendendo a regulação do streaming e a sustentabilidade do audiovisual junto ao Congresso”, diz.

Walter Salles, diretor de “Ainda Estou Aqui”, aliás, é um dos que defendem a regulação do streaming. “O país é um dos poucos países que ainda não criou uma regulação do vídeo sob demanda. Com a evasão desenfreada de divisas, perde o Brasil”, diz o cineasta, acrescentando que poderíamos adotar regras semelhantes às criadas pelo Centro Nacional de Cinematografia na França.

“Essa regulação asseguraria a presença das obras brasileiras no streaming, estimularia a diversidade cultural e financiaria diferentes segmentos da produção independente. Os direitos autorais dessas obras passariam a pertencer a quem de direito -os criadores dos conteúdos-, o que não acontece no momento.”

Os incômodos não se restringem a pequenos produtores, como Peçanha. Profissionais de vulto também se ressentem do modo como o MinC tem sido conduzido. É o caso de Mariza Leão, uma das produtoras de cinema mais respeitadas do país. Ela afirma que existe um mal-estar no mercado em relação à maneira como a pasta tem executado as ações de diversidade no audiovisual.

Segundo Leão, essas medidas são importantes, mas têm acontecido em detrimento de profissionais com mais experiência. “Participo de reuniões de sindicato de produtores tanto no Rio quanto em São Paulo e, nesses ambientes, essa política é considerada excludente. Se há algo a incluir neste momento são as produtoras e os diretores com mais experiência, que estão com seus currículos sem apreciação”, diz Leão, que produziu obras como “Guerra de Canudos”, “Meu Nome Não É Johnny” e a franquia “De Pernas pro Ar”.

“Ter feito muito filme é visto como um ponto a menos. Não entendo que isso seja saudável e ajude a construir uma política do audiovisual com ambição. Nós estamos confundindo política de investimento de Estado com política de inclusão social. Isso é muito grave.”

A ministra da Cultura afirma que as políticas de diversidade não buscam excluir setores, mas incluir grupos que não eram bem representados nas políticas culturais e acrescenta que a pasta está trabalhando em projetos para contemplar as grandes produtoras.

Do outro lado do debate, no entanto, há quem defenda um aumento no percentual na reserva de vagas para grupos marginalizados. Maíra Oliveira, conselheira da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro, diz que “o reconhecimento do Estatuto de Igualdade Racial foi escanteado na cultura”.

No caso da Lei Paulo Gustavo, os editais devem reservar 20% das vagas para pessoas negras e 10% para indígenas. “Só que a gente tem visto na prática que o mínimo tem se transformado no teto. Essa regra abre margem para que quem é contrário à diversidade não amplie o percentual”, acrescenta Oliveira.

Esse debate acompanha um longo histórico de descontinuidade e reconstrução no MinC, que já nasceu, em 1986, sob críticas que questionavam sua necessidade. Na ocasião, Millôr Fernandes escreveu no Jornal do Brasil que “Ministério da Cultura é uma contrafação da cultura”. “A cultura é. Ponto. O resto é autoritarismo.”

Durante anos, a Cultura viveu debaixo do guarda-chuva do Ministério da Educação. Isso não impediu que Gustavo Capanema, ministro da Educação de Getúlio Vargas, fizesse “um trabalho deslumbrante”, diz Luiz Roberto Nascimento Silva, que foi ministro da Cultura de Itamar Franco. Entre os feitos de Capanema, ele destaca a criação dos órgãos que se tornariam o Iphan e o Museu Nacional de Belas Artes.

Mas há quem discorde. “Talvez a pergunta seja ‘por que não haver um MinC’?”, questiona a escritora Rosa Freire D’Aguiar, que faz paralelos com outros temas que viraram pastas, como direitos das mulheres, meio ambiente ou igualdade racial. “Normalmente, quando um governo cria um ministério, é para indicar que aquele assunto interessa ao país e deve ser tratado como política de Estado.”

Nascimento Silva conta que José Aparecido de Oliveira, o primeiro ministro da Cultura, só esquentou as engrenagens da pasta por alguns meses para logo deixar o cargo e assumir o governo do Distrito Federal. Depois veio Aluísio Pimenta, mas coube a Celso Furtado, um dos economistas mais respeitados do Brasil, lançar a Lei Sarney, semente daquilo que se tornaria a Rouanet.

Fernando Collor foi o primeiro a extinguir o MinC. Em comum com Bolsonaro, além do penteado, o alagoano tinha uma certa animosidade com a classe artística. Acabou sobrando para a Cultura, que virou secretaria em 1990, e para a Lei Sarney, que foi revogada.

Sobrou também para a Embrafilme, precursora da Ancine, que foi extinta. A lei de incentivo logo foi substituída na gestão seguinte à de Ipojuca Pontes, de Sérgio Rouanet, que batizou a lei que dura até hoje. Já a Agência Nacional do Cinema só seria criada em 2011, com Fernando Henrique Cardoso.

Antes, em meados dos anos 1990, já com Itamar Franco, foi criada a Lei do Audiovisual, irmã da Rouanet que entende que o processo de criação no cinema tem suas particularidades de tempo de produção e de custos. Ela é tida como uma das responsáveis pela chamada retomada do cinema brasileiro, passada a ressaca de Collor, que tem como marco “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil”, de Carla Camurati, e como ápice a chegada de “O Quatrilho”, “Central do Brasil” e “Cidade de Deus” ao Oscar.

A pasta foi rebaixada a secretaria mais duas vezes -uma sob Michel Temer e outra durante todo o governo Bolsonaro.

“No decorrer dos 40 anos, o impacto do MinC para o segmento é indiscutível”, diz a advogada Cris Olivieri, especializada em cultura. “Por conta das regras do uso de incentivos fiscais, o segmento cultural foi obrigado a se formalizar e a se profissionalizar”, ela acrescenta. “A produção cultural brasileira é um ativo interessantíssimo. ‘Ainda Estou Aqui’ é prova do nosso soft power.”

Segundo a advogada Aline Akemi Freitas, também especializada no setor, a criação da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual pode ser analisada sob dois olhares -um mais filosófico, teórico, e um mais prático.

“O setor é bastante dependente ainda das leis, e o acesso é relativamente restrito”, diz ela, que no entanto, do ponto de vista prático, considera ambas bem-sucedidas. “Muita coisa boa e importante foi produzida e só foi possível de produzir em razão da existência dessas leis.”

Já para o advogado de direito da cultura Nichollas Alem, a Lei Rouanet não é exatamente bem-sucedida do ponto de vista de funcionamento do mecanismo e do cumprimento de objetivos constitucionais. “A justificativa política pela criação da Rouanet é de repartir com a sociedade o ônus de investir em cultura”, diz. “O problema é que a iniciativa privada só investe em projetos que dão 100% de renúncia fiscal. Isso na verdade gera um gasto tributário, ou seja, o gasto de renúncia fiscal. A Rouanet não estimula tanto que o privado coloque dinheiro do bolso.”