SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Em 1980, Gilberto Gil pensava em abandonar a música. Como despedida, escreveu “Palco”, hoje um de seus sucessos. “Era fastio. Tive um impulso de paralisar a carreira e buscar outra profissão. Alguns artistas, como eu, estão sujeitos a momentos de náusea em relação ao trabalho”, ele diz. “Mas agora não. É velhice mesmo.”

Em seu apartamento no Corredor da Vitória, em Salvador, o tropicalista de 82 anos se refere à última turnê, “Tempo Rei”, que estreia no estádio Fonte Nova, neste sábado (15), em sua cidade natal. Em meio a ensaios, fisioterapia e entrevistas, ele diz que não se trata de uma despedida definitiva dos palcos, e nem da música, mas da estrada e dos grandes shows.

Gil quer voltar à dimensão originária do seu trabalho -se apresentar em espaços de pequeno e médio porte, para públicos modestos, enquanto sua saúde permitir. “Venho de uma época em que essa dimensão atual [de show] não era nem imaginada. Não havia condições técnicas ou de logística, nem expectativa dos criadores e dos consumidores de algo nesses moldes.”

No começo desses quase 60 anos de carreira, nem mesmo a guitarra elétrica era algo comum na música brasileira. Em 1967, no Festival da MPB, na Record, ele e os Mutantes botaram o instrumento para chiar na histórica performance de “Domingo no Parque”. A plateia era pequena, mas Gil teve medo de encará-la.

“Ali era a dificuldade do enfrentamento, aquela situação nova”, diz, lembrando que teve de ser resgatado no hotel para subir ao palco, de tão nervoso que estava.

A inserção da guitarra na música brasileira foi a primeira batalha estética que Gil e seus amigos, entre eles Caetano Veloso e Gal Costa, travaram. Para ele, a influência do tropicalismo, que veio de um ímpeto de modernizar a tradição musical brasileira, à luz da bossa nova, continua nítida.

“Quase toda a música atual é inserida nesse campo das novas tecnologias. São elementos transformadores da própria condição artística”, diz. Movimentos como o tecnobrega paraense, o piseiro de João Gomes, o funk e “boa parte do que se convencionou a chamar de pop”, ele afirma, têm “a dimensão tecnológica como fator importante”.

No caso da tropicália, os conceitos estéticos estavam em diálogo com a transformação na comunicação, que passou a atingir as massas -em especial com a TV, mas também a expansão do rádio e o maior acesso aos discos. “A tropicália teve um papel na introdução desse novo contexto, no conceito de cultura pop”, afirma.

Aquelas experiências desembocaram, nos anos 1970, numa produção fonográfica hoje tida como uma usina de clássicos. Na visão de Gil, isso não tem a ver apenas com o talento daquela geração -de Novos Baianos a Jorge Ben Jor, de Tim Maia a Milton Nascimento-, mas com a confluência entre sensibilidade artística e momento histórico.

“O aproveitamento do nosso talento se deu em função da expansão dos nossos interesses como artistas, representantes de uma voz social. Eles se ampliaram muito naquela época. Essas questões que estamos levantando passaram a dizer respeito à nossa geração, o que não tinha acontecido com gerações anteriores. É nesse sentido que o tropicalismo foi original, deflagrador de novas configurações. O talento sozinho não podia fazer nada -ele daria margem a que se repetisse o que foi feito anteriormente.”

O enfrentamento dos tropicalistas foi estético, mas também político. Gil se lembra que teve reações distintas à prisão e ao exílio, impostos pela ditadura militar, em relação a Caetano. Foi na cadeia que ele compôs “Cérebro Eletrônico”, expressão do seu interesse pelas novidades tecnológicas. “Sou canceriano, mais conformado com o sofrimento”, diz. “Enquanto ele se recolhia, eu ganhava uma nova expansividade.”

Gil também compôs e gravou “Aquele Abraço”, que traz no nome uma expressão que ele ouvia dos militares na cadeia, às vésperas do exílio em Londres. Em 1970, já na Europa, escreveu um texto no Pasquim recusando o prêmio Golfinho de Ouro, que havia ganhado pela música. Para ele, hoje e naquela época, “Aquele Abraço” recebeu “interpretações parciais”.

“A música era muita coisa ao mesmo tempo. Muita coisa boa, como resposta positiva ao que acontecia na minha vida, mas também respostas negativas. Negação daquilo que me estava sendo negado, a liberdade”, diz. “Tinha a dimensão redentora, mas tinha a dimensão existencial nossa, os que tinham sofrido e, em casos mais radicais, os que foram mortos. Ela tinha, necessariamente, que cobrir interpretações mais variadas.”

No texto, Gil afirma que “‘Aquele Abraço’ não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar'”. Como escreveu o jornalista Claudio Leal nesta Folha, o artigo no Pasquim inaugurou de maneira mais firme a afirmação da identidade racial do baiano.

“A tomada de consciência da minha condição de negro foi aflorando ao longo do tempo e culminou com um momento de agudeza quando fui preso e expulso do país. Ficou mais claro. Ali, aproveito para mostrar que essa questão do racismo tinha se tornado uma coisa mais ‘escura’, para usar um contraste do claro. Esse texto representa essa ‘nova escuridão’.”

A negritude e a ancestralidade africana ficaram mais presentes na obra de Gil a partir dos anos 1970, e a ideia de originalidade do Brasil a partir da mestiçagem está em praticamente toda a sua produção. Ele crê que “uma questão racial radicalizada no Brasil tem que considerar como fim de linha a mestiçagem -é o que pode ser aqui, uma nação formada por pelo menos três raças”.

“É um país mestiço por natureza, que nesse sentido é vanguarda de uma condição mundial. O planeta se mistura. É um fenômeno mundial com a globalização, e já antes com a colonização”, diz. “A radicalização da questão racial é a mestiçagem. É inescapável.”

Ao longo dos anos, Gil trabalhou para institucionalizar sua vanguarda. Foi vereador e secretário da Cultura em Salvador, além de ministro da Cultura de Lula. Usa hoje o fardão da Academia Brasileira de Letras que parodiou em seu disco de 1968.

Apesar de frequentar essas instâncias de poder, nunca abandonou certos aspectos de contracultura. Preso em 1976 por porte de maconha, ele reitera sua posição em favor da descriminalização das drogas.

“A descriminalização favorece um melhor tratamento da saúde, do abuso da droga. E também da criminalidade. Acaba com a necessidade de condenar e confinar uma quantidade enorme de pessoas por causa do tráfico -quando comparada ao número de pessoas hospitalizadas por abuso, é uma coisa imensa.”

Ainda que hoje não use mais nenhuma delas, Gil diz que as substâncias de expansão de consciência foram “instigadoras na busca de uma nova condição psíquica”.

“Tive uma atitude seletiva sobre quais eu quis usar. A heroína, nunca provei, e ela foi muito difundida na minha geração de criadores. Cocaína eu experimentei, não gostei. A maconha usei durante muitos anos. Dessas todas era a que me parecia mais benigna no sentido de proporcionar expansão mental e sentimental adequada para a manipulação de elementos estéticos.”

Conhecido pela postura serena, Gil observa com certa naturalidade um planeta que enfrenta crises climáticas e vê a ascensão de líderes autoritários da extrema-direita, caso de Donald Trump. Acredita que “as transformações permanecem jogando o ser humano para vários lados, e o obrigando a se defrontar e se posicionar em relação a elas o tempo todo.”

E ainda que tenha trabalhado para levar a música brasileira em direção ao futuro, através também da tecnologia, ele hoje torce o nariz para magnatas das big techs como Elon Musk e conceitos como o aceleracionismo.

Gil quer para o mundo o mesmo que para sua carreira -desacelerar. “A ideia do crescimento econômico, que envolve o expansionismo internacional através do colonialismo, com as grandes dificuldades ambientais e sociais, de distribuição de riqueza, vêm chamando a atenção para o fato de que está na hora de desacelerar. É hora de pensar em decrescer, ter menos crescimento econômico -ou, pelo menos, um crescimento mais monitorado a partir de uma visão de políticas coletivas e públicas. Sou dessa turma.”

TEMPO REI, A ÚLTIMA TURNÊ

Quando De 15 de março a 22 de novembro de 2025

Onde Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba, Belém, Porto Alegre, Fortaleza e Recife

Link https://www.eventim.com.br/campaign/giltemporei

DATAS DA TURNÊ ‘TEMPO REI’

– 15 de março de 2025 – Salvador – Casa de Apostas Arena Fonte Nova

– 29 e 30 de março e 5 e 6 de abril de 2025 – Rio de Janeiro – Farmasi Arena

– 11, 12, 25 e 26 de abril de 2025 – São Paulo – Allianz Parque

– 31 de maio e 1º de junho – Rio de Janeiro – Marina da Glória

– 7 de junho de 2025 – Brasília – Arena BRB

– 14 de junho de 2025 – Belo Horizonte – Arena MRV

– 5 de julho de 2025 – Curitiba – Ligga Arena

– 9 de agosto de 2025 – Belém – Estádio Mangueirão

– 6 de setembro – Porto Alegre – Estádio Beira Rio

– 15 de novembro de 2025 – Fortaleza – Centro de Formação Olímpica

– 22 de novembro de 2025 – Recife – Classic Hall